noites
de inverno regadas a vinho e conversa fiada. sentamos na beira da rua, na
frente do boteco sujo. tava com meu primo do interior, caladão. encontro o
pessoal da sociais. com suas risadas tradicionais, falavam mal do
desenvolvimentismo do governo; olho a cara de estranheza do meu primo. segue o
papo e chega um pessoal do cinema, falam dos machismos institucionalizados do
cinema hollywoodiano. enquanto falamos, meu primo segue quieto, observando
estudantes universitários vararem a noite conversando sob como o mundo é uma
merda; e não é? agora falam de como a sociedade líquida pós-moderna representa
a decadência da consideração do outro como alguém humano e de como as exclusões
por diferenças se acentuam por causa disso. chega uma menina meio bêbada de
uísque. ela nos olha e diz:
lambidas em palavras bonitas, goles de satisfação sádica. elite intelectual. |
“viram
a novela? deu mó barraco.”
uma
guria da filosofia dá um pito no seu crivo e diz:
“nossa,
tu não sabe que as novelas são um culto à violência e a uma cultura disso?”
com
um movimento sutil, expulsa a guria da roda e retoma o rumo da conversa,
falando sobre a decadência da escola racional nas ciências com o advento da
escola deleusiana.
meu
primo se mantém firme na cerveja. luana, da psico, olha pra ele com um olhar
intrigado e pergunta:
“e
tu, fala não?”
“falo
sim, mas gosto de sair pra me divertir”
“ué, não tá curtindo?”
“deixa
eu explicar; tu sabe como começou a história de dividir horário de comida?”
“não...”
(voz de desconfiança do intelectual médio com interlocutor que não possui
carreira acadêmica)
“ora,
tinha um cara uma vez. num canto meio escuro do mundo. ele comia muito, todos
os dias. não parava de comer, comia tudo a qualquer momento. vivia com dor no
estômago e seguia comendo. perdeu a noção do que comia, dos gostos. só
mastigava e metia pra dentro. a coisa chegou a tal ponto que, quando ele se deu
conta, ele já tinha comido tudo que podia na vila dele. não havia mais alimento
algum, pessoa nenhuma. não sabia se tinham fugido ou ele tinha comido. com dificuldade, o homem
foi até a estrada e lá ficou (com suas enormes reservas de energia). uma vez,
um sábio passava por ali e se compadeceu da cara de paisagem queimada do homem.
ao ouvir o homem, disse: “o dia é
dividido em momentos. viva cada um desses momentos com o total de sua atenção,
sem desviar-se para coisas que não dizem com aquele momento. a partir dai, o
mundo passou a comer em hora certa. e a se divertir em hora certa. e aprender
que nossa atenção também pode ir pra diversão. vocês ficaram nesse papo meio
sádico de falar como tudo é uma merda. diversão sádica no boteco da capital”.
pessoal engoliu em seco a provocação. seguiu
falando sobre como a imprensa era uma merda. mas, nesse dia, meu primo de
pedras altas mostrou pra um bando de gente que se acha a elite intelectual (há 150
anos elite é engraçado) que os papos deles são só punheta pros egos inflados
deles.
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