“porra,
jorge, tu deve ter desligado o despertador. certo que já passou das 7:40. tu é
um merda”. peguei o celular, que fica na cabeceira. 7:17. senti uma mistura de
alívio por ter conseguido acordar e raiva por ter perdido quase meia-hora
de sono. fui fazer alguma coisa pra comer. torrei dois pães e pus café pra
passar. sentei na mesa da cozinha enquanto esperava. havia muita louça suja.
mal havia lugar pra por outras coisas. tive que lavar um copo pra por o café.
durante, me dei conta da minha pequena tendência esquizofrênica: toda vez que acordava me tratava na terceira
pessoa; como se houvesse alguém fora de mim que me dominasse. não sei bem se
isso é um problema; não me incomodava, mas melhor deixar os outros fora disso,
são sempre cheios de teoria. tomei o primeiro gole de café; que sempre achei
uma bebida estranha, por sinal. estranha porque eu não sei se realmente aprecio
café, ou se bebo na marra, pra desafiar meu sono e minha gastrite. bá, como eu
viajo de manha. senti a dor de cabeça, maldita ressaca.
desci.
caiam uns finos pingos d’água, que o vento fazia ficarem sem direção. vento,
semi-chuva e frio; combinação que nos faz sentir vivos, sofrivelmente vivos.
incrível minha capacidade diária de fazer o caminho da minha casa até o
trabalho sem reclamar. será que os escravos caminhavam da senzala até a
plantação sem reclamar? conformados com o destino deles? não que minha vida
seja tão ruim quanto a de um escravo, é só que faço tudo por fazer, sem pensar.
obvio que os escravos não eram assim; minha escravidão é de ignorar que não
posso escolher meu modo de vida, a deles era do trabalho; no mais, ao seu modo,
resistiam. a mentira que eles acreditavam era uma, eu acredito na da liberdade,
que eu to fazendo tudo isso porque eu quero, daquelas coisas que a gente
acredita pra seguir vivendo.
a
parada de ônibus tava vazia, era cedo ainda. lamentei de novo por ter perdido aquela
meia-hora de sono. o álcool tinha um efeito engraçado em mim – tinha ficado
bebendo consideravelmente na noite anterior e tive mais facilidade de acordar
do que de costume. deve ser a ressaca, tão forte que nem dormir consegui.
chegou o ônibus; barulhento. meu transporte diário, direto para um dia igual
aos anteriores. motorista bem humorado, time dele tinha vencido no futebol e o
meu (rival do dele) não. eu me dei conta disso pelo jornal no painel do ônibus
(que ele chama carinhosamente de carro) aberto com a foto do jogo. cobrador era
dos meus, emburrado. resmunguei um bom dia e passei. corri os olhos pra ver se
tinha um lugar pra sentar e a vi. a ruiva do ônibus. como eu tinha me esquecido
que, quando pegava o ônibus mais cedo, me deparava com ela? a idéia de vê-la
teria alegrado minha caminhada de casa até a parada. ela tava com fones no
ouvido, seu cabelo rojo dando cor ao ônibus, e seu meio sorriso emanava
energia. fui despertado do transe por um resmungo do cobrador e pela arrancada
do ônibus. ainda atordoado pela visão dela, sentei logo a sua frente. de tempos
em tempos, admirava a ruiva do ônibus. minhas olhadas deveriam ter intervalos
curtíssimos; era o que minha ansiedade conseguia agüentar. apesar da minha
atitude pouco discreta, nada mexia com a inquebrantável magia dela.
subitamente, ela desce. acaba aquele momento. que merda, porque o melhor
momento do dia é tão cedo e tão rápido? minha mãe liga. quer marcar um almoço,
saber como estou. trabalho, estudos, precisa de dinheiro? embora eu já tivesse
saído de casa, minha mãe mantinha suas asas abertas o suficiente para me
proteger. sempre imaginei que minha mãe deveria ser uma senhora bem gorda, para
dar abraços fortes, que quase me fazem sumir, me protegendo de um mundo
perverso. mães ocupam um cargo essencial na sociedade: são elas que fazem o
possível para que os filhos sigam na linha, não desafiem, não sejam um cordeiro
desgarrado; aposto que as mães da praça de maio diziam todas as manhãs para que
os filhos se concentrassem nos estudos e para que deixassem os milicos em paz,
que filho meu não tinha nada com isso.
sem
a distração da ruiva, olho para os outros passageiros. uma gorda de meia idade
falava ao telefone. o samba da noite anterior parecia ter sido bom, pelo que
contava para alguém do outro lado da linha. tinha também um cara mais novo;
estava muito focado em um desses smartphones; não tirava os olhos (e os dedos)
da tela; tinha mais uns oito assim. achei engraçado, meu celular era daqueles
que a maior distração era o jogo da cobrinha; não sei se por pura falta de
interesse em uma dúzia de aplicativos ou por medo de ficar igual a essas
pessoas. o resto ou dormia, ou ouvia música; uns, no fundo, sem fone mesmo.
tinha um livro na mochila; mas, pra não me sentir deslocado, deixei guardado e
resolvi tentar me juntar ao grupo dos que dormiam. acordei com uma freada
brusca; estávamos chegando ao centro. à medida que íamos nos aproximando, as
pessoas iam se levantando e indo para a porta. quanta ansiedade para sair do
ônibus, onde tudo é mais tranqüilo que a rua. fui o último a descer; a chuva
estava mais forte. ignorei os vendedores de guarda-chuva e segui em direção ao
trabalho.
o
prédio onde eu trabalhava era todo pomposo. tinha que ser, era a sede do
tribunal de justiça do estado; onde eu era um servidor público. grande feito na
minha vida medíocre: passar num concurso público que me garantia estabilidade
(palavra de merda). na entrada, umas doze câmeras filmavam tudo. passo pelo
detector de metais; cumprimento o segurança. no saguão de entrada, grandes
pilares ajudavam a segurar o peso dos processos acumulados e do ego dos que ali
desfilavam. o elevador não tava com muita fila, era cedo ainda. daqui a pouco
enchia. eu costumava chamar a fila dos comuns, porque os desembargadores tinham
o elevador de uso exclusivo, para que não pegassem filas e nem dividissem o ar
com pessoas hierarquicamente inferiores. divido o elevador com uma advogada
ansiosa, com seu celular na mão. olha pra mim e diz:
-
inventam tanta coisa e não inventaram um elevador que pegue o celular ainda,
né?
-
pois é, é um grande problema da nossa sociedade; diariamente as pessoas ficam
quase três minutos sem usar o celular.
a
resposta da advogada é um sorriso amargo. o andar dela chega e ela desce. a
ascensorista nem tomou notícia da nossa conversa; estava ouvindo música. ao
abrir a porta do meu setor, tenho uma sensação parecida com a que tive quando
vi a ruiva do ônibus; o setor estava completamente vazio. minha mesa ficava ao
fundo e acumulava duas pilhas de processo. o meu trabalho era simples;
burocrático e insuportável. as pilhas de processo chegavam; eu botava o nome de
quem fazia parte do processo no computar e “o sistema” fazia tudo: dava número,
imprimia umas etiquetas e sorteava o desembargador que ia julgar. depois, eu ia
distribuindo as pilhas pra cada desembargador. uma engrenagem fundamental na
sociedade.
rapidamente,
acumulei processos suficientes para poder começar a distribuição diária. já era
o meio da manhã; o setor estava cheio, todos grudados em seus computadores; vez
ou outra alguém comentava uma notícia que lia em algum site, de fofoca,
principalmente. saio com meu carrinho barulhento e começo a distribuição. todos
os processos com que eu lidava eram criminais, o que não impendia que
estivessem abarrotados de mesquinharias. entro na primeira sala. é a mais
lotada de processos; ali trabalham dois estagiários, duas assessoras e um
desembargador, cuja ausência era sempre marcante. uma assessora contava para a
outra sobre um cara que tinha adicionado ela na rede social facebook:
-
ai, ele me adicionou ontem no face. aceitei, fui ver e o cretino tinha
namorada! era uma feiosa, que se vestia muito mal.
a
outra responde, enquanto fazia a decisão de um processo:
-
nem começa a te envolver com esses caras. pegou e deixa assim. olha só esse
processo, o cara é acusado de roubar um celular. morador de rua, duas
condenações, uma quando ainda era adolescente. não tem muita prova, a mulher
disse no reconhecimento que era, mas só também.
-
é mesmo, nem vou me envolver muito. mas ele era tão gato. acho que tu tem que
condenar a uma pena média. se ele não fez essa, fez outras.
-
é, vou condenar. mostra a foto dele depois.
fiz
um barulho com o carrinho. notaram minha presença. entreguei a pilha de
processos que seriam igualmente decididos daquela maneira. como se aquelas
folhas de papel não fossem vidas; fossem um jogo. esse foi um dos grandes
motivos para abandonar a faculdade de direito na sua metade. família ficou
altamente surpreendida, afinal eu estava numa federal, com a vida feita. feita
do que?
entreguei
as outras pilhas. hora do cigarro do meio da manhã. teria que descer tudo,
fumar na rua, mas tem uma janela que todo mundo usa sem problema. o teco tava
lá; era daquelas pessoas com quem só falo de futebol.
-
que merda ontem, né? – puxei o assunto. ele sabia do que se tratava.
-
total, meio-campo perdido. chegou a ir ao estádio?
-
não vou mais desde que proibiram cerveja. tá uma merda; se é pra ver sentado,
sem beber, sem gritar, sem sinalizador, bandeira, faixa, fico em casa no sofá.
-
é, mas ai o clube ganha mais.
-
e precisa?
teco
acabou o cigarro. resmungou algo sobre a quantidade de trabalho e saiu. fumei
dois e voltei para minha mesa. nada de novo no front. todos presos aos seus
computadores, como se fios os prendessem. uma nova pilha me aguardava. fui
caminhando lentamente, o som dos teclados era opressor. as mesas, dispostas
ordeiramente em filas, opressão. josé, cara do setor que já tinha mais idade e
levava a vida de alpargatas e calça moletom dá um grito da satisfação:
-
caiu o sistema!
as reações que se seguiram foram de
completa euforia. sem sistema, não havia como trabalhar. “o sistema” comandava
nosso ritmo de trabalho, tinha todas as informações, era o único cérebro do
prédio, éramos apenas membros que agiam de acordo com “o sistema”. tratei de
pegar aquele livro na mochila. a monotonia era insuportável. o livro parecia
dizer apenas obviedades.
hora de almoçar. desci. comi algo
qualquer, passei mais tempo olhando as pessoas passarem apressadas. a minha
indiferença a mais um dia que passava era libertadora. voltei para o trabalho.
no elevador, encontrei luana, uma morena de olhos amendoados; me tirava do
sério e a razão. por meses, tentei uma aproximação direta com essa mulher.
rolaram umas saídas com grupo de amigos em comum, mas minha atitude de total
submissão só me fazia mais longe do objetivo real. hoje, a tratava com uma
certa indiferença; tentando mostrar que ainda tinha um leve interesse
nela. minhas entranhas imploravam para eu me jogar aos pés dela e dizer o
quanto a amava, mas minha experiência anterior e algumas músicas do chico
buarque me seguravam. nas últimas semanas, luana se demonstrava sedenta por
minha atenção, outrora ignorada por ela. como era doentia a maneira que nossos
instintos interagiam com nossas regras sociais.
no setor, todo mundo já tinha ligado
os fios aos seus computadores. trabalhei por mais três intermináveis horas.
nesse meio tempo catimbei as tarefas com cinco cafés e três cigarros.
quando fechei minha sexta hora de laboro, sai o mais rápido possível. o centro
estava uma correria, me juntei a fila de pessoas que só queria,
desesperadamente, chegar em casa. ônibus lotado. logo que saímos, paramos.
estavamos presos pelo mar de carros que carregavam uma pessoa só. o comodismo
de ter um carro não fazia sentido quando tu demorava cinco vezes mais para
chegar ao destino.
após
duas horas de pé, chego na minha parada. passo no mercado, compro qualquer
congelado e 5 cervejas. segunda-feira, dia de solidão e televisão. a crônica de
uma vida medíocre. tinha um daqueles aparelhos que captava sinal de
canais fechados por uma anteninha. era a coisa mais moderna da casa, depois do
computador. botei a comida no forno, lavei um garfo pra poder comer. liguei a
tv e tava passando um enlatado hollywoodiano em um canal chileno. me diverti
com as dublagens e deixei. era aquele “eu, robô”, em que os robôs adquiriam
tamanha inteligência que passavam a dominar a raça humana. uma versão fraca dos
contos de issac asimov, que falavam sobre a situação. cansei das dublagens
toscas e pus num daqueles canais que só passam documentário. tava falando da
queda do muro de berlim e da urss. pra mim, esse muro ainda existia na cabeça
das pessoas, que dividiam tudo em esquerda e direita, comunista e liberal.
deixei no canal, por preguiça de ficar mudando. um especialista opinava:
“a
população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis,
que viam na massiva propaganda do mundo capitalista. com crises econômicas
sucessivas, restrições nos suprimentos de alimentos, a urss se viu sem saída,
tendo um fim até certo ponto previsível, mas que não era esperado na época, até
pela força política que o grande urso do oriente detinha”.
a
população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
a
população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
a
população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
essa
frase ficou martelando na minha cabeça. não sei porque, mas ficou. de repente,
tive uma epifania. a maior de minha medíocre vida. as máquinas não iam nos
dominar através da ampliação de sua capacidade de pensar. elas já nos dominavam,
usando nossa completa incapacidade de pensar. estávamos presos a celulares,
televisores, computadores, aos sistemas. nossa completa incapacidade de viver
sem eles, já havia derrubado um governo gigante. nossa necessidade em andar de
carros, nos deixava presos diariamente. éramos como membros ligados a um
aparelho que coordenava nossas vidas. agíamos como esses aparelhos; obrigatoriamente
numa ordem maquinal, igual. paulatinamente, nos transformávamos em máquinas sem
a capacidade de pensar, designadas apenas para realizar duas funções: produzir
e consumir. nos retiravam o instinto, o viver, transformavam tudo em um agir
determinado. aquele ser que, ao nascer gritava ao mundo sua chegada, é reduzido
a alguém mudo, que só critica o diferente. nos retiraram a condição de humanos
e nos transformaram em máquinas, e não o contrário. o trilho da história
retirou a condição de seres orgânicos que éramos; impulsivos. estávamos fadados
ao não existir, à morte precoce.
joguei
o meu celular antigo na parede. desliguei a televisão; todas as luzes da casa.
fiquei muito tempo em silêncio, não sei dizer quanto, ouvindo o som da nova
ordem: televisores anunciando o celular mais moderno no vizinho, carros na rua.
abri
os olhos com uma luz forte e clara nos olhos. um senhor calmo, de jaleco branco
e óculos, me olhava com um sorriso falso e tranqüilo.
-
bom dia, jorge.
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