quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

bom dia, jorge


“porra, jorge, tu deve ter desligado o despertador. certo que já passou das 7:40. tu é um merda”. peguei o celular, que fica na cabeceira. 7:17. senti uma mistura de alívio por ter conseguido acordar e raiva por ter perdido quase meia-hora de sono. fui fazer alguma coisa pra comer. torrei dois pães e pus café pra passar. sentei na mesa da cozinha enquanto esperava. havia muita louça suja. mal havia lugar pra por outras coisas. tive que lavar um copo pra por o café. durante, me dei conta da minha pequena tendência esquizofrênica:  toda vez que acordava me tratava na terceira pessoa; como se houvesse alguém fora de mim que me dominasse. não sei bem se isso é um problema; não me incomodava, mas melhor deixar os outros fora disso, são sempre cheios de teoria. tomei o primeiro gole de café; que sempre achei uma bebida estranha, por sinal. estranha porque eu não sei se realmente aprecio café, ou se bebo na marra, pra desafiar meu sono e minha gastrite. bá, como eu viajo de manha. senti a dor de cabeça, maldita ressaca.
desci. caiam uns finos pingos d’água, que o vento fazia ficarem sem direção. vento, semi-chuva e frio; combinação que nos faz sentir vivos, sofrivelmente vivos. incrível minha capacidade diária de fazer o caminho da minha casa até o trabalho sem reclamar. será que os escravos caminhavam da senzala até a plantação sem reclamar? conformados com o destino deles? não que minha vida seja tão ruim quanto a de um escravo, é só que faço tudo por fazer, sem pensar. obvio que os escravos não eram assim; minha escravidão é de ignorar que não posso escolher meu modo de vida, a deles era do trabalho; no mais, ao seu modo, resistiam. a mentira que eles acreditavam era uma, eu acredito na da liberdade, que eu to fazendo tudo isso porque eu quero, daquelas coisas que a gente acredita pra seguir vivendo.
a parada de ônibus tava vazia, era cedo ainda. lamentei de novo por ter perdido aquela meia-hora de sono. o álcool tinha um efeito engraçado em mim – tinha ficado bebendo consideravelmente na noite anterior e tive mais facilidade de acordar do que de costume. deve ser a ressaca, tão forte que nem dormir consegui. chegou o ônibus; barulhento. meu transporte diário, direto para um dia igual aos anteriores. motorista bem humorado, time dele tinha vencido no futebol e o meu (rival do dele) não. eu me dei conta disso pelo jornal no painel do ônibus (que ele chama carinhosamente de carro) aberto com a foto do jogo. cobrador era dos meus, emburrado. resmunguei um bom dia e passei. corri os olhos pra ver se tinha um lugar pra sentar e a vi. a ruiva do ônibus. como eu tinha me esquecido que, quando pegava o ônibus mais cedo, me deparava com ela? a idéia de vê-la teria alegrado minha caminhada de casa até a parada. ela tava com fones no ouvido, seu cabelo rojo dando cor ao ônibus, e seu meio sorriso emanava energia. fui despertado do transe por um resmungo do cobrador e pela arrancada do ônibus. ainda atordoado pela visão dela, sentei logo a sua frente. de tempos em tempos, admirava a ruiva do ônibus. minhas olhadas deveriam ter intervalos curtíssimos; era o que minha ansiedade conseguia agüentar. apesar da minha atitude pouco discreta, nada mexia com a inquebrantável magia dela. subitamente, ela desce. acaba aquele momento. que merda, porque o melhor momento do dia é tão cedo e tão rápido? minha mãe liga. quer marcar um almoço, saber como estou. trabalho, estudos, precisa de dinheiro? embora eu já tivesse saído de casa, minha mãe mantinha suas asas abertas o suficiente para me proteger. sempre imaginei que minha mãe deveria ser uma senhora bem gorda, para dar abraços fortes, que quase me fazem sumir, me protegendo de um mundo perverso. mães ocupam um cargo essencial na sociedade: são elas que fazem o possível para que os filhos sigam na linha, não desafiem, não sejam um cordeiro desgarrado; aposto que as mães da praça de maio diziam todas as manhãs para que os filhos se concentrassem nos estudos e para que deixassem os milicos em paz, que filho meu não tinha nada com isso.
sem a distração da ruiva, olho para os outros passageiros. uma gorda de meia idade falava ao telefone. o samba da noite anterior parecia ter sido bom, pelo que contava para alguém do outro lado da linha. tinha também um cara mais novo; estava muito focado em um desses smartphones; não tirava os olhos (e os dedos) da tela; tinha mais uns oito assim. achei engraçado, meu celular era daqueles que a maior distração era o jogo da cobrinha; não sei se por pura falta de interesse em uma dúzia de aplicativos ou por medo de ficar igual a essas pessoas. o resto ou dormia, ou ouvia música; uns, no fundo, sem fone mesmo. tinha um livro na mochila; mas, pra não me sentir deslocado, deixei guardado e resolvi tentar me juntar ao grupo dos que dormiam. acordei com uma freada brusca; estávamos chegando ao centro. à medida que íamos nos aproximando, as pessoas iam se levantando e indo para a porta. quanta ansiedade para sair do ônibus, onde tudo é mais tranqüilo que a rua. fui o último a descer; a chuva estava mais forte. ignorei os vendedores de guarda-chuva e segui em direção ao trabalho.
o prédio onde eu trabalhava era todo pomposo. tinha que ser, era a sede do tribunal de justiça do estado; onde eu era um servidor público. grande feito na minha vida medíocre: passar num concurso público que me garantia estabilidade (palavra de merda). na entrada, umas doze câmeras filmavam tudo. passo pelo detector de metais; cumprimento o segurança. no saguão de entrada, grandes pilares ajudavam a segurar o peso dos processos acumulados e do ego dos que ali desfilavam. o elevador não tava com muita fila, era cedo ainda. daqui a pouco enchia. eu costumava chamar a fila dos comuns, porque os desembargadores tinham o elevador de uso exclusivo, para que não pegassem filas e nem dividissem o ar com pessoas hierarquicamente inferiores. divido o elevador com uma advogada ansiosa, com seu celular na mão. olha pra mim e diz:
- inventam tanta coisa e não inventaram um elevador que pegue o celular ainda, né?
- pois é, é um grande problema da nossa sociedade; diariamente as pessoas ficam quase três minutos sem usar o celular.
a resposta da advogada é um sorriso amargo. o andar dela chega e ela desce. a ascensorista nem tomou notícia da nossa conversa; estava ouvindo música. ao abrir a porta do meu setor, tenho uma sensação parecida com a que tive quando vi a ruiva do ônibus; o setor estava completamente vazio. minha mesa ficava ao fundo e acumulava duas pilhas de processo. o meu trabalho era simples; burocrático e insuportável. as pilhas de processo chegavam; eu botava o nome de quem fazia parte do processo no computar e “o sistema” fazia tudo: dava número, imprimia umas etiquetas e sorteava o desembargador que ia julgar. depois, eu ia distribuindo as pilhas pra cada desembargador. uma engrenagem fundamental na sociedade.
rapidamente, acumulei processos suficientes para poder começar a distribuição diária. já era o meio da manhã; o setor estava cheio, todos grudados em seus computadores; vez ou outra alguém comentava uma notícia que lia em algum site, de fofoca, principalmente. saio com meu carrinho barulhento e começo a distribuição. todos os processos com que eu lidava eram criminais, o que não impendia que estivessem abarrotados de mesquinharias. entro na primeira sala. é a mais lotada de processos; ali trabalham dois estagiários, duas assessoras e um desembargador, cuja ausência era sempre marcante. uma assessora contava para a outra sobre um cara que tinha adicionado ela na rede social facebook:
- ai, ele me adicionou ontem no face. aceitei, fui ver e o cretino tinha namorada! era uma feiosa, que se vestia muito mal.
a outra responde, enquanto fazia a decisão de um processo:
- nem começa a te envolver com esses caras. pegou e deixa assim. olha só esse processo, o cara é acusado de roubar um celular. morador de rua, duas condenações, uma quando ainda era adolescente. não tem muita prova, a mulher disse no reconhecimento que era, mas só também.
- é mesmo, nem vou me envolver muito. mas ele era tão gato. acho que tu tem que condenar a uma pena média. se ele não fez essa, fez outras.
- é, vou condenar. mostra a foto dele depois.
fiz um barulho com o carrinho. notaram minha presença. entreguei a pilha de processos que seriam igualmente decididos daquela maneira. como se aquelas folhas de papel não fossem vidas; fossem um jogo. esse foi um dos grandes motivos para abandonar a faculdade de direito na sua metade. família ficou altamente surpreendida, afinal eu estava numa federal, com a vida feita. feita do que?
entreguei as outras pilhas. hora do cigarro do meio da manhã. teria que descer tudo, fumar na rua, mas tem uma janela que todo mundo usa sem problema. o teco tava lá; era daquelas pessoas com quem só falo de futebol.
- que merda ontem, né? – puxei o assunto. ele sabia do que se tratava.
- total, meio-campo perdido. chegou a ir ao estádio?
- não vou mais desde que proibiram cerveja. tá uma merda; se é pra ver sentado, sem beber, sem gritar, sem sinalizador, bandeira, faixa, fico em casa no sofá.
- é, mas ai o clube ganha mais.
- e precisa?
teco acabou o cigarro. resmungou algo sobre a quantidade de trabalho e saiu. fumei dois e voltei para minha mesa. nada de novo no front. todos presos aos seus computadores, como se fios os prendessem. uma nova pilha me aguardava. fui caminhando lentamente, o som dos teclados era opressor. as mesas, dispostas ordeiramente em filas, opressão. josé, cara do setor que já tinha mais idade e levava a vida de alpargatas e calça moletom dá um grito da satisfação:
- caiu o sistema!
            as reações que se seguiram foram de completa euforia. sem sistema, não havia como trabalhar. “o sistema” comandava nosso ritmo de trabalho, tinha todas as informações, era o único cérebro do prédio, éramos apenas membros que agiam de acordo com “o sistema”. tratei de pegar aquele livro na mochila. a monotonia era insuportável. o livro parecia dizer apenas obviedades.
            hora de almoçar. desci. comi algo qualquer, passei mais tempo olhando as pessoas passarem apressadas. a minha indiferença a mais um dia que passava era libertadora. voltei para o trabalho. no elevador, encontrei luana, uma morena de olhos amendoados; me tirava do sério e a razão. por meses, tentei uma aproximação direta com essa mulher. rolaram umas saídas com grupo de amigos em comum, mas minha atitude de total submissão só me fazia mais longe do objetivo real. hoje, a tratava com uma certa indiferença; tentando mostrar que ainda tinha um leve interesse nela. minhas entranhas imploravam para eu me jogar aos pés dela e dizer o quanto a amava, mas minha experiência anterior e algumas músicas do chico buarque me seguravam. nas últimas semanas, luana se demonstrava sedenta por minha atenção, outrora ignorada por ela. como era doentia a maneira que nossos instintos interagiam com nossas regras sociais.
            no setor, todo mundo já tinha ligado os fios aos seus computadores. trabalhei por mais três intermináveis horas. nesse meio tempo catimbei as tarefas com cinco cafés e três cigarros. quando fechei minha sexta hora de laboro, sai o mais rápido possível. o centro estava uma correria, me juntei a fila de pessoas que só queria, desesperadamente, chegar em casa. ônibus lotado. logo que saímos, paramos. estavamos presos pelo mar de carros que carregavam uma pessoa só. o comodismo de ter um carro não fazia sentido quando tu demorava cinco vezes mais para chegar ao destino.
após duas horas de pé, chego na minha parada. passo no mercado, compro qualquer congelado e 5 cervejas. segunda-feira, dia de solidão e televisão. a crônica de uma vida medíocre. tinha um daqueles aparelhos que captava sinal de canais fechados por uma anteninha. era a coisa mais moderna da casa, depois do computador. botei a comida no forno, lavei um garfo pra poder comer. liguei a tv e tava passando um enlatado hollywoodiano em um canal chileno. me diverti com as dublagens e deixei. era aquele “eu, robô”, em que os robôs adquiriam tamanha inteligência que passavam a dominar a raça humana. uma versão fraca dos contos de issac asimov, que falavam sobre a situação. cansei das dublagens toscas e pus num daqueles canais que só passam documentário. tava falando da queda do muro de berlim e da urss. pra mim, esse muro ainda existia na cabeça das pessoas, que dividiam tudo em esquerda e direita, comunista e liberal. deixei no canal, por preguiça de ficar mudando. um especialista opinava:
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis, que viam na massiva propaganda do mundo capitalista. com crises econômicas sucessivas, restrições nos suprimentos de alimentos, a urss se viu sem saída, tendo um fim até certo ponto previsível, mas que não era esperado na época, até pela força política que o grande urso do oriente detinha”.
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
essa frase ficou martelando na minha cabeça. não sei porque, mas ficou. de repente, tive uma epifania. a maior de minha medíocre vida. as máquinas não iam nos dominar através da ampliação de sua capacidade de pensar. elas já nos dominavam, usando nossa completa incapacidade de pensar. estávamos presos a celulares, televisores, computadores, aos sistemas. nossa completa incapacidade de viver sem eles, já havia derrubado um governo gigante. nossa necessidade em andar de carros, nos deixava presos diariamente. éramos como membros ligados a um aparelho que coordenava nossas vidas. agíamos como esses aparelhos; obrigatoriamente numa ordem maquinal, igual. paulatinamente, nos transformávamos em máquinas sem a capacidade de pensar, designadas apenas para realizar duas funções: produzir e consumir. nos retiravam o instinto, o viver, transformavam tudo em um agir determinado. aquele ser que, ao nascer gritava ao mundo sua chegada, é reduzido a alguém mudo, que só critica o diferente. nos retiraram a condição de humanos e nos transformaram em máquinas, e não o contrário. o trilho da história retirou a condição de seres orgânicos que éramos; impulsivos. estávamos fadados ao não existir, à morte precoce.
joguei o meu celular antigo na parede. desliguei a televisão; todas as luzes da casa. fiquei muito tempo em silêncio, não sei dizer quanto, ouvindo o som da nova ordem: televisores anunciando o celular mais moderno no vizinho, carros na rua.
abri os olhos com uma luz forte e clara nos olhos. um senhor calmo, de jaleco branco e óculos, me olhava com um sorriso falso e tranqüilo.
- bom dia, jorge.





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