sábado, 29 de dezembro de 2012

gentes de quem eu não compraria um carro



pra comprar um carro usado, tem que confiar no dono.

gente que come pastel de garfo e faca
nunca teve gastrite aos 25
faz psicologia e trabalha com psiquiatria
assa carne com sal fino
não come costela
pede xis sem maionese
não gosta de guria com vestidinho
diz "não sou racista, tenho até um amigo negro"
não gosta de boteco
faz sociologia e não toma canha
investe na bolsa
acredita no contrato social

de vocês, y otros más, não dá pra comprar um calhambeque

moinho


joão se levava muito a sério. não é que fosse burro ou não defendesse ideais com procedência. a questão era que joão acreditava piamente na sua imprescindível existência e na sua invariável razão. a primeira ele externalizava na sua atitude em tudo que participava; parecia crer que, caso se ele não estivesse ali, nada daquilo estaria funcionando. tinha uma necessidade de manter tudo próximo de si. a segunda era que joão não conseguia ser contrariado em discussões. defendia ideias bonitas de debate, troca de ideias horizontalmente, desde que a conclusão fosse do modo que defendia, caso contrário logo se emburrava. joão achava o restante das pessoas burras e pouco esforçadas; cria que todos deveriam ter o mesmo nível de esforço que ele – dedicava 12 horas de seu dia para estudos e revisão de seus afazeres. ria de pessoas que não estudavam o mesmo que ele ou que erravam algo. estudar academicamente, falar academicamente faziam parte de um plano de vida; acreditava na academia como a religião suprema da humanidade. não que a defendesse em sua estrutura, mas acreditava que as críticas que tinha para com a academia eram       culpa de pessoas que não estavam a sua altura, muito embora tivesse poucos anos de estudo acadêmico.
um dia o apêndice de joão explodiu. ele segurou ao máximo para ir ao hospital, pois sabia que não deveria ser nada demais. mas era. seu intestino estava repleto de apêndice explodido. diante de sua demora, ficou 3 meses hospitalizado, por causa de uma infecção interna.
quando saiu de volta ao mundo real, joão percebeu que tudo permanecia do mesmo modo, mesmo que não tivesse o seu dedo em nada daquilo. algumas coisas, na verdade, haviam ido para caminhos muito frutíferos.
joão se emburrou. teve que criar outro grupo, onde pudesse reinar. não pode conviver com a ideia de que aquilo tudo podia girar sem ele. fez disso um moinho. destruiu tudo que podia. debandou-se para outros lados, onde poderia ser levado mais a sério.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

refeições


em 18/08/12 morreu um cara feliz.
o nome dele era afonso. afonso era um cara bem sucedido. tinha uma mercedes benz nova (antes tinha uma ano 96, mas foi promovido e logo tratou de financiar uma nova, mais condizente com o cargo que agora ocupava). além disso, morava em um bom local. o bairro era bem localizado (longe do trabalho – no centro – mas o preço do metro quadrado era alto), o prédio era bonito e bem equipado – fitnessespaço gourmet, portaria 24 horas (com direito a apresentação de identidade para todo não-morador que quiser entrar) e uma linda fachada. apesar do apartamento não ser muito grande, um bom arquiteto resolveu tudo com móveis embutidos. era casado com uma mulher bem nova, augusta. como havia mencionado, afonso tinha recém sido promovido no seu trabalho; era, agora, um vice-presidente administrativo. sua função era aumentar lucros, afinal era pra isso que uma empresa era administrada. não que amava fazer o que fazia, desde a faculdade sempre foi muito desanimado com tudo, parecia tudo muito falso, mas aquilo dava dinheiro, estabilidade e sanidade a afonso.
a estrutura da vida de afonso, todavia, era abalada na questão familiar. e para entender isso, necessário voltar no tempo. teve um casamento tranquilo, de 17 anos, com elisabete, com quem teve um filho. separou-se com muita briga de elisabete e acabou se casando com uma secretária da empresa em que trabalhava, a já referida augusta (ainda era apenas diretor de um setor da empresa quando isto ocorreu).
mas falemos, antes, de elisabete e como se deu o fim do casamento. elisabete era uma ex-colega de colegial com quem afonso se casou sem que até hoje o próprio encontrasse algum motivo. havia se dado assim: afonso era um guri mais na dele e muito estudioso, não bebia, não ia em festas. pelas regras sociais de qualquer escola, era um derrotado, não tendo, portanto, sucesso com as mulheres. elisabete, contudo, se aproximou do menino semi-gordo e estudioso; era uma menina dedicada e muito religiosa, o que fez com que as atitudes mais comedidas de afonso gerassem algum tipo de atração. foi muito difícil para elisabete fazer com que aqueles lanches no recreio (com repetidos goles no refrigerante de afonso) fossem percebidos com outros olhos pelo ingênuo afonso, visto que sua moralidade a impedia de tomar medidas mais concretas. afonso foi alertado, em um dia invernal e chuvoso, por um de seus únicos amigos, roberto. já era o último ano da escola e afonso tomou coragem de perguntar a elisabete se ela gostava dele; ela respondeu com um simples toque de mãos; nem mesmo a irmã zenira (era um colégio católico), sempre atenta às desvirtudes juvenis, teria notado tão simbólico ato.
afonso e elisabete seguiram na faculdade e (ela de pedagogia, ele de administração). após se formarem, se casaram. não foi algo que contou com uma grande proatividade de afonso; na realidade, eles precisaram se casar, visto que elisabete estava grávida e sua fé em deus não poderia ser abalada por um casamento cuja noiva não era virgem. foi tudo muito às pressas e, de repente, afonso se deu conta que daquele ato simbólico sua vida estava selada: casamento consumado e filho encomendado. as coisas andaram bem até o filho completar sete anos. não que essa idade fizesse tudo insuportável, mas o fato é que o menino já não ocupava tanto a vida do casal e, quando se deram conta, os jantares em restaurantes caros eram realizados em constrangedores silêncios. afonso e elisabete, que costumavam falar muito durante os lanches do recreio, não conseguiam trocar uma palavra enquanto degustavam um filé ao molho de aspargos com um vinho de rótulo caro.
enquanto isso, no trabalho, a sua seriedade e dedicação eram recompensados com cargos cada vez mais altos e bem remunerados. afonso dedicava metade do seu dia aos negócios – almoçava reuniões, antes de dormir respondia emails de diretores. era o funcionário mais produtivo. nos encontros de turma, era sempre um exemplo daquele que estourou na vida. não amava isso tudo, mas algo o compelia a seguir, não sabia sequer se era para dar boas condições de consumo para sua família. apenas seguia fazendo, mecanicamente, seu trabalho que, por algum motivo, dava bons resultados.
por tão dedicado ao trabalho e por tão distante, afonso já não mantinha mais relações sexuais com sua esposa. a semi-gordura do colégio já havia se transformado em obesidade e sua esposa não se enquadrava nos padrões de beleza. assim, sem paixão, atração ou fôlego, restava a afonso exercer sua sexualidade masturbando-se em curtos períodos de tempo, durante o expediente, pensando em sua secretária, denise.
o filho, ricardo, havia herdado a propensão à obesidade do pai e tinha problemas com peso. além disso, passava o dia vidrado em algum tipo de eletrônico, seja o computador ou o video-game. o contato de afonso com o filho se resumia a levá-lo para a escola. mantinha a consciência tranquila com relação a essa situação pois pensava fazer o filho mais feliz com todos os bens materiais que as duras horas de serviço podiam comprar.
por muitos anos, afonso empurrou esta situação sem questioná-la. não pensava, sequer, se era feliz. apenas vivia um dia após o outro, esperando a morte bater no seu apartamento.  contudo, quando foi promovido ao cargo de diretor, afonso conheceu uma nova secretária: augusta. uma morena de 23 anos, que poderia aparecer em qualquer capa de revista. tinha um sorriso encantador. afonso manteve a rotina que tinha com denise por meses, se masturbando no banheiro. mas augusta era diferente, ela parecia ligar para afonso. conversava com ele. certa vez, quando tiveram que trabalhar até muito tarde, saíram pra jantar. afonso e augusta conversaram e se divertiram muito. afonso sentia alegria em viver aqueles momentos, o que só sentira, talvez, nos primeiros anos com elisabete. afonso se deu conta, então, que a mão de augusta repousava levemente na sua. um ato quase natural. ficou desconcertado. tentou recobrar a consciência, mas a situação apenas piorava. decidiram ir embora. augusta, contudo, era menina decidida, confiante. falou para o homem de 44 anos que mais parecia uma criança tremendo:
- vamos para minha casa?
afonso seguiu as instruções. passaram três horas na casa de augusta; afonso teve prazeres que há muito não tinha. seu desempenho sexual não era dos melhores, mas o simples fato de um ato que imaginava diariamente estar se concretizando deixava afonso em êxtase.
por 3 anos, afonso manteve um caso extraconjugal com augusta. sustentava um casamento, que estava cada vez pior, por acreditar que deveria manter sua família unida fosse pelo bem de ricardo, fosse para proteger sua imagem na sociedade. passados os três anos, ricardo já contava 13 anos, cada vez mais distante dos pais e maduro o suficiente para ver algo que saltava aos olhos; a traição do pai. eram jantares semanais, telefonemas escondidos, dezenas de e-mails. elisabete, no entanto, não podia ver esta traição.
essa ignorância de elisabete não decorria do fato de ela ser ingênua, ou algo do tipo. na verdade, elisabete sempre fora mais atenta aos detalhes da vida carnal do que afonso. logo no começo do casamento, inclusive, elisabete teve uma ardente noite com um padre recém saído do seminário; só conseguiu se livrar de tamanha culpa após muitas doações à paróquia e muito tempo de joelho. elisabete, em realidade, não conseguia crer que afonso, aquele garoto meio palerma e hoje esse adulto conformado e emburrado, pudesse ter coragem o suficiente para sair da zona de conforto que era seu casamento, se aventurar em algo fora do círculo pré-definido de sua vida pacata. elisabete tinha tanta fé nessa imagem que foi incapaz de notar as mudanças de afonso, hoje muito mais descontraído.
ocorre que, quando ricardo comentou como a tal da augusta enviava e-mails carinhosos ao pai, durante o sagrado jantar em família (único momento em que a tv era emudecida), o alerta de uma fêmea que quer proteger seu macho disparou. elisabete mal conseguiu servir a sobremesa diária de afonso. este, por sua vez, tentava – a todo custo – conversar, algo raro para qualquer almoço de família; estava assustado, com medo: pela primeira vez, em três anos, poderia ser desmascarado. a desculpa que dera foi a de que, por obvio ela era carinhosa, já que era sua secretária, mas afonso não sabia mentir. o jantar só foi divertido para ricardo, que parecia apreciar a tensão entre os pais.
elisabete, muito atordoada, foi lavar a louça e, como em todo trabalho braçal, pôde pensar muito. dedicou-se a ver se havia sentido os ciúmes na tal de augusta, com quem já havia conversado em festas da empresa: “moça linda, 26 anos. obviamente, afonso sentiria atração por ela, qualquer homem sentiria. mas a questão é: ela não sentiria atração por ele, não fisicamente. mas talvez por toda a imagem que afonso representava – gerente de um setor da companhia, carro importado (mesmo que usado), apartamento de luxo – era algo a se considerar. havia também as mensagens no e-mail, que ricardo não iria inventar”. chegou à conclusão que deveria investigar melhor e, brilhantemente, pensou numa estratégia que daria respostas na mesma noite – elisabete faria com que afonso confessasse se havia traído ela.
após servir o terceiro prato de sobremesa de afonso, elisabete foi para o banho, como fazia diariamente. afonso, por sua vez, verificou seus e-mails do trabalho. estava nervoso e serviu uma dose de um whisky que, de tão pouco apreciado na casa, mas parecia um enfeite do que algo a ser bebido. acabou tomando três doses e se servindo uma porção extra de pudim de doce de leite. meio cambaleante, afonso percorreu o mau iluminado corredor do apartamento; sabia o que o esperava: uma mulher dormindo com um romance barato apoiado no peito e a luz do abajur ligada. ajeitaria a mulher, desligaria o abajur e deitaria. furtivamente, mandaria uma mensagem de boa noite para augusta; repetia mecanicamente o ato há três anos, o whisky não iria atrapalhar. quando entrou no quarto, uma surpresa. elisabete não estava com romance algum, muito menos dormindo.
elisabete teve um banho mais demorado do que o comum. cuidadosamente, depilou as pernas e a virilha, a ocasião exigia. passou um creme que deixava sua pela mais suave e com algum cheiro artificial supostamente criado para ser parecido com baunilha. era preciso escolher uma camisola diferente da habitual, algo que chamasse a atenção e não a sua velha camisola rasgada. escolheu uma que ganhou de amigo secreto do grupo da igreja; era preta, tinha rendas e realçava os seios fartos. sentou e esperou afonso na posição mais sensual que podia. enquanto isso, imaginava porque diabos alguém daria aquela camisola em um evento de católicos – havia comprados velas religiosas para seu amigo secreto. voltou a focar na porta; a qualquer momento chegaria afonso.
afonso não acreditava na cena. encarava a esposa deitada de uma maneira sensualmente agressiva. via naquela mulher algo que há muito pensava que ela havia perdido, pura sexualidade. a primeira ideia de afonso é que havia dormido no sofá e estava sonhando, o que não poderia ser real, já que vivia repetindo que sofá era um lugar para sentar e não dormir. era realidade, sua mulher tentava seduzi-lo, como há mais década não fazia. tinha que ter relação com o infeliz comentário do filho. pensou em fugir. olhou para o banheiro. tarde demais. elisabete chamou. caminhou até perto da cama, ela se levanta e diz que afonso demorou para ir deitar. afonso sente o calor do whisky e de uma excitação inesperada subirem pelo seu corpo. afonso a joga na cama; o seu último ato minimamente racional; seguiu-se, então, uma explosão de amor carnal que há muito estas paredes não viam. sempre muito detalhista, elisabete havia tratado de virar os santos na cabeceira, para que não vissem tamanha falta de moralidade.
enquanto afonso roncava alto e exalava um cheiro forte de álcool, elisabete não conseguia dormir. chorava. havia visto um afonso que não conhecia. seguro de seus atos, cheio de práticas novas – pecaminosas. por mais que soubesse que afonso assistisse filmes de mulheres nuas, não era possível que ele aprendesse tal desenvoltura. tinha certeza, seu casamento não era mais puro. sentia-se suja. sentia sua cama suja. a casa toda. não se moveu por toda a noite. sentia ódio de afonso. nojo de como ele havia destruído sua família, de como ele não havia respeitado a ela.
o café da manhã foi silencioso. nada de anormal, pois quase sempre era assim. o que chamava a atenção, contudo, era a apatia de elisabete. não conseguia se animar a fazer uma torrada para o filho. entregou um ovo cozido para cada um com um café queimado. resmungou de dores nas costas, quando interpelada por afonso. este disse que ela deveria ir ao médico e disse que iria ficar até às 11 da noite, como de costume, para suas reuniões organizacionais semanais. 
elisabete agora sabia – ia encontrar a amante. falou que ia marcar o médico e foi dormir no quarto. tentou pegar no sono, mas só pensava no que faria a partir de agora. deixaria assim? afinal, correria muitos riscos; perderia a estabilidade do casamento, seria uma mulher desquitada – o que iriam dizer na igreja? mas como iria conviver com tanta vergonha? conseguiria falar com afonso alguma vez mais? não. precisava fazer algo.
ligou para sua mãe e disse que iria no médico e depois ao ensaio do coral da igreja: teria que cuidar de ricardo. aprontou-se e pegou um taxi – tinha medo de dirigir – em direção ao trabalho de afonso. lá ficou até às 8:20 da noite, falando com o taxista sobre o fato de ser traída; este só piorou a situação, dizendo como isto era inadmissível. afonso saiu em seu carro, mas não se podia notar se havia alguém dentro do carro, ou não, os vidros eram muito escuros.
dentro do restaurante, afonso se acomodou na mesa habitual. pediu um prato rotineiro. augusta chegou sorridente. se beijaram. neste momento, elisabete, como se tivesse montada em um porco, gritou ensandecida. o descompasso foi tamanho que afonso passou mal. acordou num hospital, cheio de vergonhas e desquitado de elisabete.
não demorou para afonso casar com augusta. naõ demorou para os diretores da companhia acharem afonso um cara mais competente, ainda que sexualmente falando. foi promovido. ocorre que, contudo, afonso teve uma vida mudada totalmente. enquanto elisabete dava comida, mas não prestigiava os desejos libidinosos de alfredo, augusta estava presente neste quesito mas não completava os desejos, igualmente importantes, alimentares de alfredo. na verdade, o proibia de comer mais de 2345 caloria diárias. o bife deveria ser do tamanho do punho. os doces semanais. afonso havia saído da frigideira e pulado no fogo.
para fugir disso, descobriu uma loja de chocolates no caminho do trabalho. lá havia a melhor trufa de maracujá do mundo. comia sempre. a trufa do seu zico. único problema era o local. ficava no treme-treme. prédio conhecido por abrigar diversas pessoas que ganhavam a vida explodindo bolhas de sentimentos sexuais reprimidos. desde trasvestis a meninos de família cristã tradicional trabalhavam lá. havia a nandinha. travesti que deixava afonso perturbado, pois mexia com seus instintos, seus desejos. mas não podia, não devia. era um travesti.
elisabete incomodava. ricardo chorava. augusta proibia. chefes e subordinados olhavam afonso com olhos de burocracia. tudo girava e ele não sentia mais vontade de ser feliz. a não ser quando comia uma trufa de maracujá e via nandinha passar com sua saia vermelha.
um dia, afonso disse para augusta que não queria mais sua dieta e saiu de casa. augusta já namorava um guri de 20 anos da academia. afonso subiu no apartamento de nandinha. falou que queria um bife e sexo doentio. nandinha sorriu e fez como ele queria. afonso foi feliz. fez isso por 4 meses até que todos soubesse e o julgassem. cozinhava e fodia bem nandinha, nada mais era preciso. só que afonso sempre será afonso. sempre pensará no resto.
afonso andava pelo centro. ia para o treme-treme. estava atordoado com a ideia de que todos sabiam de sua nova condição. comprou um trufa de maracujá e uma de morango; seu zico fez piada que afonso estava exagerando, este sequer olhou. entrou no elevador com o cheiro de mofo, cigarro e sexu já habituais; estar naquele lugar acalmou um pouco afonso. engoliu a trufa de morango de uma vez só, apertou o último andar. subiu no terraço do prédio, onde podia ver toda a cidade. a torre da igreja, o antigo trabalho, a vida que levava seguia na frente de seus olhos, com ou sem ele.
essa vida não pertencia mais a afonso. estava feliz agora, livre de tudo aquilo. mas algo o incomodava – aqueles que vivam sua antiga vida não conseguiam dizer que estava feliz, ao contrário, diziam que afonso era um perdedor. afonso havia se acostumado a viver sem felicidade, sua força motriz era outra. aquilo que fazia afonso seguir sua vida em frente não era a felicidade, mas o fato de ser considerado um vencedor pelos outros. uma família estruturada, era bem sucedido no emprego, depois da família,  mulher que todos desejavam, carro do ano, viagem pra outro continente. isso nunca tinha feito dele um cara feliz, mas fazia dele um ganhador na vida. era isso que mantinha afonso de pé. agora, ele havia perdido seu apoio, sua bengala. era feliz, mas isso não importava porque os outros o consideravam louco, perdedor.
desse modo, afonso havia perdido sua força motriz, o sentido de sua vida. seria impossível recuperar, nenhuma empresa contrataria um homem casado com um travesti cozinheiro. estava tudo perdido.
afonso comeu a trufa de maracujá. tirou os sapatos e os óculos. chegou à ponta do terraço, olhou para a cidade, sua antiga vida. olhou para o prédio, sua vida nova. estavam juntos e separados ao mesmo tempo. afonso deu um passo para frente e caiu. se sua queda passasse em câmera lenta, se veriam nas janelas luzes vermelhas, pessoas fazendo sexo, consumindo drogas. mas tudo foi rápido e simples, como a vida que se ia. afonso bateu no chão como um saco de areia, fez um grande barulho. todo o prédio desceu, curiosos da rua olhavam pra ele. as duas vidas de afonso o encaravam no chão, espantados. seu corpo já estava destruído, seu espírito havia se constituído pelo primeiro ato sincero de afonso.
morreu em 18/08\/2012, um cara feliz, mas que não sabia lidar com isso. precisava que os outros dissessem isso pra ele. 
senti o choro dele escorrer por mim. abraço forte. família não se explica, não se vê por dna. família é aquilo que nos faz sentir partes desse mundo que nos come. ele queria uma família. naquele momento, nós fomos isso.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

bom dia, jorge


“porra, jorge, tu deve ter desligado o despertador. certo que já passou das 7:40. tu é um merda”. peguei o celular, que fica na cabeceira. 7:17. senti uma mistura de alívio por ter conseguido acordar e raiva por ter perdido quase meia-hora de sono. fui fazer alguma coisa pra comer. torrei dois pães e pus café pra passar. sentei na mesa da cozinha enquanto esperava. havia muita louça suja. mal havia lugar pra por outras coisas. tive que lavar um copo pra por o café. durante, me dei conta da minha pequena tendência esquizofrênica:  toda vez que acordava me tratava na terceira pessoa; como se houvesse alguém fora de mim que me dominasse. não sei bem se isso é um problema; não me incomodava, mas melhor deixar os outros fora disso, são sempre cheios de teoria. tomei o primeiro gole de café; que sempre achei uma bebida estranha, por sinal. estranha porque eu não sei se realmente aprecio café, ou se bebo na marra, pra desafiar meu sono e minha gastrite. bá, como eu viajo de manha. senti a dor de cabeça, maldita ressaca.
desci. caiam uns finos pingos d’água, que o vento fazia ficarem sem direção. vento, semi-chuva e frio; combinação que nos faz sentir vivos, sofrivelmente vivos. incrível minha capacidade diária de fazer o caminho da minha casa até o trabalho sem reclamar. será que os escravos caminhavam da senzala até a plantação sem reclamar? conformados com o destino deles? não que minha vida seja tão ruim quanto a de um escravo, é só que faço tudo por fazer, sem pensar. obvio que os escravos não eram assim; minha escravidão é de ignorar que não posso escolher meu modo de vida, a deles era do trabalho; no mais, ao seu modo, resistiam. a mentira que eles acreditavam era uma, eu acredito na da liberdade, que eu to fazendo tudo isso porque eu quero, daquelas coisas que a gente acredita pra seguir vivendo.
a parada de ônibus tava vazia, era cedo ainda. lamentei de novo por ter perdido aquela meia-hora de sono. o álcool tinha um efeito engraçado em mim – tinha ficado bebendo consideravelmente na noite anterior e tive mais facilidade de acordar do que de costume. deve ser a ressaca, tão forte que nem dormir consegui. chegou o ônibus; barulhento. meu transporte diário, direto para um dia igual aos anteriores. motorista bem humorado, time dele tinha vencido no futebol e o meu (rival do dele) não. eu me dei conta disso pelo jornal no painel do ônibus (que ele chama carinhosamente de carro) aberto com a foto do jogo. cobrador era dos meus, emburrado. resmunguei um bom dia e passei. corri os olhos pra ver se tinha um lugar pra sentar e a vi. a ruiva do ônibus. como eu tinha me esquecido que, quando pegava o ônibus mais cedo, me deparava com ela? a idéia de vê-la teria alegrado minha caminhada de casa até a parada. ela tava com fones no ouvido, seu cabelo rojo dando cor ao ônibus, e seu meio sorriso emanava energia. fui despertado do transe por um resmungo do cobrador e pela arrancada do ônibus. ainda atordoado pela visão dela, sentei logo a sua frente. de tempos em tempos, admirava a ruiva do ônibus. minhas olhadas deveriam ter intervalos curtíssimos; era o que minha ansiedade conseguia agüentar. apesar da minha atitude pouco discreta, nada mexia com a inquebrantável magia dela. subitamente, ela desce. acaba aquele momento. que merda, porque o melhor momento do dia é tão cedo e tão rápido? minha mãe liga. quer marcar um almoço, saber como estou. trabalho, estudos, precisa de dinheiro? embora eu já tivesse saído de casa, minha mãe mantinha suas asas abertas o suficiente para me proteger. sempre imaginei que minha mãe deveria ser uma senhora bem gorda, para dar abraços fortes, que quase me fazem sumir, me protegendo de um mundo perverso. mães ocupam um cargo essencial na sociedade: são elas que fazem o possível para que os filhos sigam na linha, não desafiem, não sejam um cordeiro desgarrado; aposto que as mães da praça de maio diziam todas as manhãs para que os filhos se concentrassem nos estudos e para que deixassem os milicos em paz, que filho meu não tinha nada com isso.
sem a distração da ruiva, olho para os outros passageiros. uma gorda de meia idade falava ao telefone. o samba da noite anterior parecia ter sido bom, pelo que contava para alguém do outro lado da linha. tinha também um cara mais novo; estava muito focado em um desses smartphones; não tirava os olhos (e os dedos) da tela; tinha mais uns oito assim. achei engraçado, meu celular era daqueles que a maior distração era o jogo da cobrinha; não sei se por pura falta de interesse em uma dúzia de aplicativos ou por medo de ficar igual a essas pessoas. o resto ou dormia, ou ouvia música; uns, no fundo, sem fone mesmo. tinha um livro na mochila; mas, pra não me sentir deslocado, deixei guardado e resolvi tentar me juntar ao grupo dos que dormiam. acordei com uma freada brusca; estávamos chegando ao centro. à medida que íamos nos aproximando, as pessoas iam se levantando e indo para a porta. quanta ansiedade para sair do ônibus, onde tudo é mais tranqüilo que a rua. fui o último a descer; a chuva estava mais forte. ignorei os vendedores de guarda-chuva e segui em direção ao trabalho.
o prédio onde eu trabalhava era todo pomposo. tinha que ser, era a sede do tribunal de justiça do estado; onde eu era um servidor público. grande feito na minha vida medíocre: passar num concurso público que me garantia estabilidade (palavra de merda). na entrada, umas doze câmeras filmavam tudo. passo pelo detector de metais; cumprimento o segurança. no saguão de entrada, grandes pilares ajudavam a segurar o peso dos processos acumulados e do ego dos que ali desfilavam. o elevador não tava com muita fila, era cedo ainda. daqui a pouco enchia. eu costumava chamar a fila dos comuns, porque os desembargadores tinham o elevador de uso exclusivo, para que não pegassem filas e nem dividissem o ar com pessoas hierarquicamente inferiores. divido o elevador com uma advogada ansiosa, com seu celular na mão. olha pra mim e diz:
- inventam tanta coisa e não inventaram um elevador que pegue o celular ainda, né?
- pois é, é um grande problema da nossa sociedade; diariamente as pessoas ficam quase três minutos sem usar o celular.
a resposta da advogada é um sorriso amargo. o andar dela chega e ela desce. a ascensorista nem tomou notícia da nossa conversa; estava ouvindo música. ao abrir a porta do meu setor, tenho uma sensação parecida com a que tive quando vi a ruiva do ônibus; o setor estava completamente vazio. minha mesa ficava ao fundo e acumulava duas pilhas de processo. o meu trabalho era simples; burocrático e insuportável. as pilhas de processo chegavam; eu botava o nome de quem fazia parte do processo no computar e “o sistema” fazia tudo: dava número, imprimia umas etiquetas e sorteava o desembargador que ia julgar. depois, eu ia distribuindo as pilhas pra cada desembargador. uma engrenagem fundamental na sociedade.
rapidamente, acumulei processos suficientes para poder começar a distribuição diária. já era o meio da manhã; o setor estava cheio, todos grudados em seus computadores; vez ou outra alguém comentava uma notícia que lia em algum site, de fofoca, principalmente. saio com meu carrinho barulhento e começo a distribuição. todos os processos com que eu lidava eram criminais, o que não impendia que estivessem abarrotados de mesquinharias. entro na primeira sala. é a mais lotada de processos; ali trabalham dois estagiários, duas assessoras e um desembargador, cuja ausência era sempre marcante. uma assessora contava para a outra sobre um cara que tinha adicionado ela na rede social facebook:
- ai, ele me adicionou ontem no face. aceitei, fui ver e o cretino tinha namorada! era uma feiosa, que se vestia muito mal.
a outra responde, enquanto fazia a decisão de um processo:
- nem começa a te envolver com esses caras. pegou e deixa assim. olha só esse processo, o cara é acusado de roubar um celular. morador de rua, duas condenações, uma quando ainda era adolescente. não tem muita prova, a mulher disse no reconhecimento que era, mas só também.
- é mesmo, nem vou me envolver muito. mas ele era tão gato. acho que tu tem que condenar a uma pena média. se ele não fez essa, fez outras.
- é, vou condenar. mostra a foto dele depois.
fiz um barulho com o carrinho. notaram minha presença. entreguei a pilha de processos que seriam igualmente decididos daquela maneira. como se aquelas folhas de papel não fossem vidas; fossem um jogo. esse foi um dos grandes motivos para abandonar a faculdade de direito na sua metade. família ficou altamente surpreendida, afinal eu estava numa federal, com a vida feita. feita do que?
entreguei as outras pilhas. hora do cigarro do meio da manhã. teria que descer tudo, fumar na rua, mas tem uma janela que todo mundo usa sem problema. o teco tava lá; era daquelas pessoas com quem só falo de futebol.
- que merda ontem, né? – puxei o assunto. ele sabia do que se tratava.
- total, meio-campo perdido. chegou a ir ao estádio?
- não vou mais desde que proibiram cerveja. tá uma merda; se é pra ver sentado, sem beber, sem gritar, sem sinalizador, bandeira, faixa, fico em casa no sofá.
- é, mas ai o clube ganha mais.
- e precisa?
teco acabou o cigarro. resmungou algo sobre a quantidade de trabalho e saiu. fumei dois e voltei para minha mesa. nada de novo no front. todos presos aos seus computadores, como se fios os prendessem. uma nova pilha me aguardava. fui caminhando lentamente, o som dos teclados era opressor. as mesas, dispostas ordeiramente em filas, opressão. josé, cara do setor que já tinha mais idade e levava a vida de alpargatas e calça moletom dá um grito da satisfação:
- caiu o sistema!
            as reações que se seguiram foram de completa euforia. sem sistema, não havia como trabalhar. “o sistema” comandava nosso ritmo de trabalho, tinha todas as informações, era o único cérebro do prédio, éramos apenas membros que agiam de acordo com “o sistema”. tratei de pegar aquele livro na mochila. a monotonia era insuportável. o livro parecia dizer apenas obviedades.
            hora de almoçar. desci. comi algo qualquer, passei mais tempo olhando as pessoas passarem apressadas. a minha indiferença a mais um dia que passava era libertadora. voltei para o trabalho. no elevador, encontrei luana, uma morena de olhos amendoados; me tirava do sério e a razão. por meses, tentei uma aproximação direta com essa mulher. rolaram umas saídas com grupo de amigos em comum, mas minha atitude de total submissão só me fazia mais longe do objetivo real. hoje, a tratava com uma certa indiferença; tentando mostrar que ainda tinha um leve interesse nela. minhas entranhas imploravam para eu me jogar aos pés dela e dizer o quanto a amava, mas minha experiência anterior e algumas músicas do chico buarque me seguravam. nas últimas semanas, luana se demonstrava sedenta por minha atenção, outrora ignorada por ela. como era doentia a maneira que nossos instintos interagiam com nossas regras sociais.
            no setor, todo mundo já tinha ligado os fios aos seus computadores. trabalhei por mais três intermináveis horas. nesse meio tempo catimbei as tarefas com cinco cafés e três cigarros. quando fechei minha sexta hora de laboro, sai o mais rápido possível. o centro estava uma correria, me juntei a fila de pessoas que só queria, desesperadamente, chegar em casa. ônibus lotado. logo que saímos, paramos. estavamos presos pelo mar de carros que carregavam uma pessoa só. o comodismo de ter um carro não fazia sentido quando tu demorava cinco vezes mais para chegar ao destino.
após duas horas de pé, chego na minha parada. passo no mercado, compro qualquer congelado e 5 cervejas. segunda-feira, dia de solidão e televisão. a crônica de uma vida medíocre. tinha um daqueles aparelhos que captava sinal de canais fechados por uma anteninha. era a coisa mais moderna da casa, depois do computador. botei a comida no forno, lavei um garfo pra poder comer. liguei a tv e tava passando um enlatado hollywoodiano em um canal chileno. me diverti com as dublagens e deixei. era aquele “eu, robô”, em que os robôs adquiriam tamanha inteligência que passavam a dominar a raça humana. uma versão fraca dos contos de issac asimov, que falavam sobre a situação. cansei das dublagens toscas e pus num daqueles canais que só passam documentário. tava falando da queda do muro de berlim e da urss. pra mim, esse muro ainda existia na cabeça das pessoas, que dividiam tudo em esquerda e direita, comunista e liberal. deixei no canal, por preguiça de ficar mudando. um especialista opinava:
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis, que viam na massiva propaganda do mundo capitalista. com crises econômicas sucessivas, restrições nos suprimentos de alimentos, a urss se viu sem saída, tendo um fim até certo ponto previsível, mas que não era esperado na época, até pela força política que o grande urso do oriente detinha”.
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
a população soviética se viu cansada da falta de bens de consumo não-duráveis...
essa frase ficou martelando na minha cabeça. não sei porque, mas ficou. de repente, tive uma epifania. a maior de minha medíocre vida. as máquinas não iam nos dominar através da ampliação de sua capacidade de pensar. elas já nos dominavam, usando nossa completa incapacidade de pensar. estávamos presos a celulares, televisores, computadores, aos sistemas. nossa completa incapacidade de viver sem eles, já havia derrubado um governo gigante. nossa necessidade em andar de carros, nos deixava presos diariamente. éramos como membros ligados a um aparelho que coordenava nossas vidas. agíamos como esses aparelhos; obrigatoriamente numa ordem maquinal, igual. paulatinamente, nos transformávamos em máquinas sem a capacidade de pensar, designadas apenas para realizar duas funções: produzir e consumir. nos retiravam o instinto, o viver, transformavam tudo em um agir determinado. aquele ser que, ao nascer gritava ao mundo sua chegada, é reduzido a alguém mudo, que só critica o diferente. nos retiraram a condição de humanos e nos transformaram em máquinas, e não o contrário. o trilho da história retirou a condição de seres orgânicos que éramos; impulsivos. estávamos fadados ao não existir, à morte precoce.
joguei o meu celular antigo na parede. desliguei a televisão; todas as luzes da casa. fiquei muito tempo em silêncio, não sei dizer quanto, ouvindo o som da nova ordem: televisores anunciando o celular mais moderno no vizinho, carros na rua.
abri os olhos com uma luz forte e clara nos olhos. um senhor calmo, de jaleco branco e óculos, me olhava com um sorriso falso e tranqüilo.
- bom dia, jorge.





das ideias


pedro era um amigo meio outsider. formal, bem arrumado e tudo. apesar de grande amigo, a gente não confiava muito nele. era o jeito. impressionante como a gente não tinha a capacidade de comprar aquilo que ele falava. uma questão puramente estética criava uma barreira entre nós. o nelsinho, todo metido a hippie, dizia que o problema não era a estética, mas o colégio militar. no nelsinho a gente levava fé, deviam ser os dreads.
um dia, contudo, nelsinho, born n' raised em seio católico e colégio de freira, mas sempre querendo mostrar que tava na última trincheira do comando de vanguardistas, largou que o pedro era um reaça. tudo porque pedro disse que o nelsinho tava errado na opinião dele sobre um movimento social qualquer. pedro disse que apenas o fato de se tratar de um movimento social não o legitimava a falar pelos seus membros e trasnformarem seus membros em servos de uma ideia. nelsinho dizia que quando a ideia era boa, os integrantes tinham que se sacrificar. pedro retrucou que isso era fascismo. nelsinho desabou e disse o que disse. a gente tava numa rodoviária comendo um pastel de carne.
pedro ficou tranquilo. parecia esperar por aquele momento durante toda nossa amizade. com cautela, tirou o ovo cozido inteiro que vinha no seu pastel (tinha tom esverdeado sabe-se lá o porquê) para o lado. triturou com as mãos em pequenos pedaços e distribuiu pelo pastel.
"alguém quer ovo ralado?"
silêncio. atila e eu estavamos com o pastel entre o prato e a boca há 25 segundos, já eram quase partes integrantes de nossos corpos, tamanha nossa indiferença ao fato de serem alimentos. nelsinho largou o garfo e a faca e e olhou com um olhar impaciaente para pedrinho
"nelsinho, as ideias não são certas. não adquirem o caráter de supra-humanas. existem sentimentos. sentimentos são humanos. se sentir livre e amar importam mais que algo escrito num papel e deixado para os ratos comerem e incêndios queimarem. transformar pessoas em ideias é o que combatemos e praticamos ao mesmo tempo. a liberdade não é uma luta, mas o desenvolvimento da capacidade de se reinventar e ser unido e autonomo ao mesmo tempo. por exemplo, se eu tivesse no poder, drogas não seriam criminalizadas. mas comer pastel com garfo e faca seria. e tu taria preso. quem tá mais certo? não sei, mas acho que todo mundo deveria comer pastel com garfo e fumar maconha. isso é liberdade. ideais não tem essa capacidade".
nelsinho olhou, coçou a barba com quem anotasse aquele discurso pra repetir numa roda de amigos. era bonito. continou comendo seu pastel, com a mão.
pedro não era reaça e nelsinho parecia um panfleto ambulante. aquele que mais se parecia com o que combatiamos, era o que mais entendia o que defendiamos. o outro, era uma imagem construída, que mais parecia com o que esperavamos do que com a si mesmo.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

cansaço


em cima da mesa de vidro, bitucas e cinzas de cigarro. uma ou outra ponta perdida há muito. na cozinha, a louça acumulada. as garrafas estavam jogadas em cantos aleatórios da casa. o apartamento dela, sempre impecável, parecia uma residência estudantil pós-festa. não era por preguiça, mas por um completo desapego às rotinas mundanas. o único som que se ouvia era o do chiado da vitrola rodando, o disco preferido havia acabado. vez ou outra, se ouvia um choro contido. nada parecia real, o tempo não andava e o resto pouco importava. ora, não entendia, sequer, why the sun goes on shining, afinal, ele havia dito good bye. não foi bem assim... na verdade, ele só não correu atrás dela. ela jurou que ele correria. ele até quis, fez menção, mas suas pernas não responderam ao comando do coração, seguiam leais ao cérebro.  ainda estava molhada da chuva que caia no verão desgastante. o fim era esperado para eles, mas surpreendente para quem os via. eram felizes juntos, mas diferentes demais para seguir.
ainda se amavam, sabiam.
mas até o amor cansa. e ele precisava dormir. 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

um cigarro e três vidas


gerson é gerente de banco na oswaldo aranha. saiu de seu trabalho às 9:45. tarde assim porque tinha que fechar o balanço do mês. seguiu em direção à ramiro barcelos, caminhando. já era tarde, mas o calor infernal do dia ainda era sentido na calçada. enquanto andava, gerson percebeu um cigarro caindo de apartamento do prédio de 17 andares ao seu lado. o cigarro tinha marca de batom. cairá ao solo às 9:52. gerson imaginou uma morena de trinta anos fumando nua na cama, enquanto o homem com quem tinha recém feito sexo já dormia. a morena acendeu um cigarro pra pensar na vida. acabou, jogou pela janela e foi dormir. gerson não entendia como o cigarro fazia pessoas pensarem tanto.
taiane saia da aula de cursinho preparatório para concurso público. dedicava 13 horas de seu dia para, quem sabe, fazer parte da burocracia estatal. andava pela oswaldo aranha em direção à felipe camarão. às 9:52, passava por um prédio alto. viu um cigarro cair lentamente na calçada. tinha uma marca de batom vermelho. olha ao redor, um homem semi-gordo de aspecto triste também percebe. certamente, se tratava de uma festa em que uma convidada havia jogado seu cigarro pela janela. não gostava de fumantes, eram mal educados.
às 11:34, do mesmo dia, gerson está sentado na privada da sua casa, com o chuveiro ligado ao lado. soca uma punheta pensando na cena do cigarro. fazia tudo escondido da sua esposa, que assistia televisão na sala ao lado. curiosamente, gerson focou mais atenção na largura das costas do homem que dormia ao lado da morena.
às 10:41, após comer uma miojo, taiane toma dois comprimidos de antidepressivos, um remédio para manter a atenção e se preparar para mais uma madrugada de estudos. com um sorriso, imagina sua carreira brilhante como funcionária pública e o apartamento que iria comprar (morava em um jk alugado). daria festas? não, esse pessoal costuma estragar os móveis.
às 9:51, carla fecha o romance que relia. toma o último gole de vinho tinto. estava sozinha, por opção. gostava de noites em que se despia de suas máscaras sociais e se reencontrava com o seu espírito. mais cedo, tinha organizado sua casa, para se reencontrar na bagunça. havia até experimentado batons antigos, pra ver o que prestava. agora, iria assistir filmes até cair no sono. dá uma última pitada em seu cigarro, companheiro de solidão, e o joga pela janela.
às 9:52, na oswaldo aranha, três carlas existiram ao mesmo tempo. a verdadeira, a que gerson sonhava e aquela que taiane queria ser, mas negava. 

força da história


tem gente que não dá bola pra história. a coisa toda se passa, mas a gente nem liga. curte curtir. curtição é bom. mas sabe quando tu fica na praia de boa, bebendo uma gelada, enrolando um basê e vendo as menina passar? ai, uma hora a maré chega forte e leva todas as tuas coisas, te quebra as pernas e corta a curtição. pois é, a maré é a história.  

punheta pro ego


noites de inverno regadas a vinho e conversa fiada. sentamos na beira da rua, na frente do boteco sujo. tava com meu primo do interior, caladão. encontro o pessoal da sociais. com suas risadas tradicionais, falavam mal do desenvolvimentismo do governo; olho a cara de estranheza do meu primo. segue o papo e chega um pessoal do cinema, falam dos machismos institucionalizados do cinema hollywoodiano. enquanto falamos, meu primo segue quieto, observando estudantes universitários vararem a noite conversando sob como o mundo é uma merda; e não é? agora falam de como a sociedade líquida pós-moderna representa a decadência da consideração do outro como alguém humano e de como as exclusões por diferenças se acentuam por causa disso. chega uma menina meio bêbada de uísque. ela nos olha e diz:
lambidas em palavras bonitas, goles de satisfação sádica. elite intelectual.

“viram a novela? deu mó barraco.”
uma guria da filosofia dá um pito no seu crivo e diz:
“nossa, tu não sabe que as novelas são um culto à violência e a uma cultura disso?”
com um movimento sutil, expulsa a guria da roda e retoma o rumo da conversa, falando sobre a decadência da escola racional nas ciências com o advento da escola deleusiana.
meu primo se mantém firme na cerveja. luana, da psico, olha pra ele com um olhar intrigado e pergunta:
“e tu, fala não?”
“falo sim, mas gosto de sair pra me divertir”
“ué, não tá curtindo?”                                   
“deixa eu explicar; tu sabe como começou a história de dividir horário de comida?”
“não...” (voz de desconfiança do intelectual médio com interlocutor que não possui carreira acadêmica)
“ora, tinha um cara uma vez. num canto meio escuro do mundo. ele comia muito, todos os dias. não parava de comer, comia tudo a qualquer momento. vivia com dor no estômago e seguia comendo. perdeu a noção do que comia, dos gostos. só mastigava e metia pra dentro. a coisa chegou a tal ponto que, quando ele se deu conta, ele já tinha comido tudo que podia na vila dele. não havia mais alimento algum, pessoa nenhuma. não sabia se tinham fugido  ou ele tinha comido. com dificuldade, o homem foi até a estrada e lá ficou (com suas enormes reservas de energia). uma vez, um sábio passava por ali e se compadeceu da cara de paisagem queimada do homem. ao ouvir o homem, disse:  “o dia é dividido em momentos. viva cada um desses momentos com o total de sua atenção, sem desviar-se para coisas que não dizem com aquele momento. a partir dai, o mundo passou a comer em hora certa. e a se divertir em hora certa. e aprender que nossa atenção também pode ir pra diversão. vocês ficaram nesse papo meio sádico de falar como tudo é uma merda. diversão sádica no boteco da capital”.
pessoal engoliu em seco a provocação. seguiu falando sobre como a imprensa era uma merda. mas, nesse dia, meu primo de pedras altas mostrou pra um bando de gente que se acha a elite intelectual (há 150 anos elite é engraçado) que os papos deles são só punheta pros egos inflados deles.