quinta-feira, 25 de setembro de 2014

a noite da existência

Quando Bruna apareceu com aqueles sapatos coloridos e “super confortáveis” não tive muita vontade de usá-los, apesar de ela tê-los trazido especialmente para mim. Era uma menina doce, com sorriso ingênuo, de quem recém aprontou algo Seu olhar era daqueles de dar esperança na humanidade Tudo isso me fazia sentir uma enorme simpatia por Bruna, mas nada disso conseguiu me demover da ideia de usar aqueles sapatos. Ela os deixou em cima da mesa e saiu, um pouco frustrada pela minha falta da de animação mesmo com toda a propagada que ela tinha feito. Voltaria mais tarde, avisou. Comecei a lavar louça, acumulada já há alguns dias, ouvindo o rádio, mas algo me incomodava; não era a quantidade de louça nem a opinião conservadora do locutor, era como se alguém me observasse. Por não suportar mais, me viro e corro os olhos pela cozinha. Quando estava prestes a me virar, percebo aquele tênis colorido deixado por Bruna. Paro, seco as mãos e vou em direção a ele.  Analiso todos os seus aspectos (cheiro, material, flexibilidade) e o solto de volta à mesa. Sento na cadeira e passo a encarar os tênis. Transcorrido algum tempo, a cor dos tênis e seu prometido conforto me deram uma grande vontade de calçá-los; o que fiz com certa falta de destreza, como se nunca houvera calçado um calçado. Logo ao levantar, percebi que – de fato – eram muito confortáveis. Subitamente, senti uma vontade de sair e caminhar; o que foi uma experiência realmente prazerosa: as ruas pareciam mais coloridas e os sons mais musicados. Me surpreendi como o conforto e as cores do tênis alteravam minha percepção do ambiente. Após me deixar perder pelas ruas, sem que soubesse quanto tempo caminhava, avistei um parque que nunca havia me chamado atenção. Passei a correr no parque e, cada vez mais, sentia que os tênis faziam parte de mim, como se eles se integrassem ao meu corpo. Parei pra descansar em uma pedra e percebi que havia um buraco muito grande. Me aproximei, devagar. Dentro do buraco havia uma luz, era grande o suficiente para que eu entrasse. Sem me dar conta do porquê, entro no buraco, com certa dificuldade. Havia uma grande galeria, não muito bem iluminada; onde se podia ver, contudo, uma escada de madeira, descendo ainda mais. Passei a descer até que tropecei.
Ao cair, percebo que já estava em uma cabana toda de madeira. O teto era negro e havia apenas uma janela, com uma cortina encardida. Por todos os lados, se viam bitucas de cigarro e álcool. Além da escada pela qual havia descido, havia apenas a porta do banheiro e um cômodo único que consistia na sala e na cozinha. De móveis, apenas uma mesa, sem cadeiras. A porta de saída estava trancada e não havia sinal de nenhuma chave. Me virei para analisar se havia algo na parte que servia como cozinha – havia um fogão e muita louça suja. Ao me virar para a sala, percebi que já não estava mais sozinho na cabana. Uma coruja enorme e de óculos pousara em cima da mesa. Uma hiena com sorriso debochado estava próxima da escada. Na janela, se via um grande grilo e, por fim, um corvo muito escuro caminhava próximo à porta. Estranhamente, não me senti incomodado com o grupo que me cercava e as palavras saíram naturalmente:
- Onde estou?
- Da porta pra dentro, respondeu o corvo.
- Posso sair? Perguntei com certa apreensão.
O grilo, em um salto, se postou diante de mim e disse:
- Isso depende de ti, não de nós.
A hiena riu e correu pela sala em velocidade. Aproximou-se da coruja e falou algo. A coruja fez uma cara de assentimento, olhou fundos nos meus olhos e disse:
- Tudo vai ficar bem, tu precisa apenas relaxar.
A hiena gargalhou de alegria e seguiu saltitante pela sala. Fechei os olhos e tentei pensar. Quando me dera por conta, me senti muito estupido. Para sair dali, bastava subir a escada novamente. Me dirigi à escada e o grilo falou com receio:
- Talvez não seja uma boa idéia....
Ignorei a advertência e fui subindo. Degrau por degrau, uma luz aumentava. Quando já estava na metade da escada, esta se transformou em uma rampa, fazendo com que escorregasse e batesse com força na parede. O riso da hiena foi estrondoso. A coruja voou até perto de mim, repousou carinhosamente sua asa no meu ombro e disse, novamente olhando fundo dos meus olhos:
- Permita que o tempo diga quando tu estiveres pronta para a escada.
- Tempo? Que tempo? Quantas horas?
De relance, percebo que a hiena fala ao ouvido do corvo.
- Aqui, não há horas a serem medidas. O tempo é apenas tempo. Responde o corvo.
            - O que você precisa entender é que aqui não há como saber quanto tempo se passou, apenas sentir, me diz o grilo, talvez percebendo minha cara confusa.          
            Resolvo sentar ao chão e me ponho a pensar. A única explicação plausível é de que tudo não passava de um sonho. Aquilo tudo tinha que ser um sonho e eu precisava apenas acordar. Fecho os olhos e me belisco. Nada. Mais forte. Nada ainda. Vou ao banheiro e molho o rosto, sigo na mesma. Da sala, ouço a hiena rindo com força. Volto apressado e grito pra ela:
            - E tu? Só fica dizendo aos outros o que eles devem falar e rindo? Não acrescenta em nada??
            A hiena ri com força e estouro toda minha raiva. Tento chutá-la, mas é em vão, a hiena é muito mais rápida. Quando está numa distância segura, ouço a voz da hiena pela primeira vez:
            - Tu vai desperdiçar a noite da existência assim?
            - Mas nada disso é real!! Grito.
            A hiena corre para a cozinha até que não posso mais vê-la. Vou atrás e vejo Bruna, com seu sorriso habitual. Segurava uma caderneta vermelha em uma das mãos e um lápis em outra. Com calma e me estendendo a caderneta ela diz:
            - Tu logo vai voltar. Tudo vai dar certo.
            Bruna se bota ao lado da coruja, que tem sempre o mesmo olhar fixo em mim. Não estava calmo. Nem mesmo com o conhecido rosto de Bruna. Sento-me. Com uma dificuldade infantil, escrevo na caderneta “noite da existência”. Tento respirar, mas o ar parece arder. Refaço, mentalmente, como cheguei até ali e me recordo que tudo começou quando calcei os tênis coloridos. A solução lógica seria apenas tirar os tênis e tudo terminaria; só então percebo que já não existem mais tênis, eu estava descalço. Pergunto à Bruna:
- Isso é real?
- Sim, tudo isso é real e tudo vai ficar bem, responde.
Essa realidade, no entanto, me fazia sentir dor. Queria voltar no tempo, nunca ter posto aqueles malditos sapatos. Começo, então, a girar no sentido anti-horário, sob o olhar atento do corvo. Aquilo, ao meu ver, me faria voltar no tempo. Giro cada vez mais rápido, de braços abertos. Com os olhos fechados e os braços abertos, giro. Tento não ficar parado na noite da existência, tento sair desse lugar. Quando já havia perdido a noção de quantas voltas, caio de bunda no chão, o que faz a hiena rir alto. Abro os olhos e tudo parece igual: o corvo me olha com apreensão, o grilo fala algo que soa (e apenas soa) inteligente, Bruna me olha com pena. A coruja voa até mim e tenta me acalmar uma vez mais.
Depois de mais este fracasso, me ponho a escrever alucinadamente na caderneta; tudo que me vem à mente. Olho ao meu redor e percebo que, agora, a cabana estava lotada de artistas: Fellini, Dali, Kurt, Gilmour, outros tantos. Eles apenas leem o que escrevo na caderneta e riem. Aquilo tudo me acalma, eles sabem o que acontece e sabe que a porta da cabana irá se abrir.
Ou não? Ou será que todos ali estavam mortos e eu também? Gilmour estava vivo, tinha certeza. Ou será que ele havia morrido em um acidente de carro? Não conseguia ter certeza. Eu estava morto, só podia. Apenas aí, tudo se encaixava: animais falantes, artistas mortos, tudo. Eu estava morto, havia passado dessa pra melhor, provavelmente de algum jeito bizarro, esquecido do mundo dos vivos, deixado apodrecer em um canto qualquer; comido pelos vermes. Eu estava morto. Não havia outra explicação. Sentia que minha vida toda havia sido como um curso de um rio e que agora tudo acabava; não existiam mais margens que me prendiam, apenas terra. Eu era a água escorrendo pela terra, sem rumo definido. Nada mais fazia sentido, pois não havia um desenlace possível. A única coisa que precisava era do meu corpo. Precisava ver meu corpo e tudo acabaria.
Olho para Bruna e grito:
- Onde tá meu corpo? Me mostra o que restou da minha existência! Eu quero ver os vermes se apossando da minha carne!
Quem responde é a coruja:
- Tu estás muito mais vivo que jamais esteve. O tempo irá te mostrar que isso passa.
O grilo complementa:
- Isso tudo não passa de um momento em que tu te sente fora do corpo, mas o dentro e o fora se complementam.
Outra vez, o maldito dizia algo sem sentido. Saio correndo para a cozinha, me isolo. Se eu não estou morto, onde estão as pessoas normais? Aquelas cuja existência é uma eterna obrigação impensada? Aquelas que esperam sua morte com a boca cheia de dentes na sala de jantar? Onde estavam elas?
Como quem ouve meus pensamentos o corvo me arrasta até a janela. Retiro a cortina encardida, quase rasgando-a. Olho para fora e lá estão as pessoas normais. As pessoas que não se importam com a porta pra dentro, diz o corvo. O devir é um eterno dever, não há escolhas, apenais aceitação. Fecho a janela assustado; pela primeira vez queria estar entre aquelas pessoas que tanto me causaram asco. Queria não sentir medo, queria sair daquela cabana.
Me ponho a escrever na caderneta. A hiena, então, tira a caderneta das minhas mãos e corre para longe. Me desespero como nunca. Sinto minhas pernas desmoronarem; não posso acreditar no que está acontecendo. É como se a única ponte com a realidade houvesse ruído. Estava ilhado na porta pra dentro. A maldita hiena havia destruído tudo que restava fora de mim. Passo a gritar para a infame hiena:
- Eu não suporto mais tua presença! Teus risos, teu controle! E agora tu me tira a caderneta!! Por quê?? O que eu te fiz??
            A única resposta da hiena é risada. O restante do grupo se aproxima de mim e tenta me acalmar. A única coisa que queria era ver meu cadáver e tudo estaria terminado. Não podia mais suportar. Passo a girar novamente. Tudo fica escuro.
            Como se houvesse passado anos. Como se todos os monstros dentro de mim ainda gritassem. Como se a vida não fosse outra coisa que não confusão. Toda a insanidade do mundo. Foi isso que senti na fração de segundos seguintes ao abrir meus olhos e perceber que estava em meu quarto. Bruna tomava um chá e me olhava. Sorri brevemente. Pergunto:
            - Este é o momento que pergunto que tudo seguirá bem como antes e que passo a fingir que nada aconteceu?
            Pesadamente, Bruna responde:
            - Sim.


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