domingo, 14 de julho de 2013

isolado no brete.

A pequena janela do tamanho de uma TV de 14’’ se fechou com um estrondo. Esta era uma janela diferente. Primeiro: ela não ficava em uma parede, mas em uma porta (de metal, muito pesada); segundo: ela não dava para rua, mas para um corredor.  Do lado de dentro desta janela, havia um cubículo com mais três paredes, apenas uma delas com outra janela minúscula (que dava para um pátio). Era a segunda vez que me jogavam nesse lugar. A primeira foi quando cheguei da audiência, no meu primeiro dia preso. Era o brete mais foda de ficar, nos botavam ali quando a gente chegava (pra se adaptar à casa) ou quando fazia cagada lá em cima. Ai ficava isolado do resto. Ou com mais um. Era o máximo que o brete agüentava; dois nossos. Nesse minúsculo lugar (devia ter o tamanho de duas mesas de bar), tinha uma latrina que fedia (raramente limpavam ali) e um chuveiro pinga-pinga. Um canto pra deitar. Em cima, um tubo que descia ar lá de outro setor, onde ficavam os bretes normais. Quando os internos não tavam fora, rolava trocar uma ideia, mas não era sempre.
            O seu me jogou ali dizendo que eu tinha que pensar no que tinha feito. Seu eram os monitores dos internos (na casa, até carcerário tem nome especial). Mas podiam me jogar trinta dias no isola que eu ia fazer igual. A ladaia foi assim: o cara deu de mão no xampu que minha mãe trouxe escondido, não podia deixar assim. Além de ter que me virar com um sabonete que cheira a cachorro molhado, se eu deixo os outros se criarem, eles me comem vivo. Lá em cima é matar ou morrer, e, aqui embaixo, era só morrer mesmo. Quando eu soube quem era, obriguei a me devolver a parada na marra; um Seu que não ia muito comigo me levou pelo pescoço pra direção. Me mandaram pro isola na hora e aqui tava eu, sozinho.
            Eram seis horas da tarde, tinham me posto aqui bem na hora da malhação, que bosta. O sol já tava descendo, a luz era fraca, não tinha muito o que fazer. Esse cheiro era insuportável. Comecei a fazer uns exercícios pro tempo passar, mas aguentei só uns 45 minutos (isso sou eu imaginando, porque não tem relógio por lá). A primeira vez que eu passei pelo isola, minha primeira noite na casa, tinha outro guri que tinha caído por 157, rolou uns papos sobre música, mina, mas era foda igual, lá ninguém era amigo de ninguém. Só que não tão foda quanto ficar sozinho.
            Pensei na rua, a noite ia ser boa hoje. Sexta-feira, calor, a banda ia ser afudê. Podia fazer uma carne em casa, curtir com a família e depois sair. Foi numa noite dessas que os boina me pegaram. Eu tinha trabalhado umas duas, três vezes na boca do lado de casa. Eu comprava uma erva (curtia fumar, me acalmava, era bom pra caralho) ali do lado de casa e os caras tinham me chamado pra dar uma mão; a grana era boa (uma noite pagava meio salário meu) e eu precisava levantar um dinheiro pra coroa. Ai, os boina me viram uma dessas vezes e me marcaram. Na noite que eu cai eu tava com um baseado só e uma grana pra comprar a janta que de casa, tava descendo pro mercado quando me derrubaram no chão, soco no rim e cala a boca. Condenado por tráfico; tinha dinheiro, droga e morava perto da boca: o suficiente pra ser traficante. Ai me internaram aqui (pra de menor tudo tem nome estranho, prisão é internação e sempre dizem que tão nos educando).
            Gritei pelo tubo de ar. Ninguém me respondia. Porra, que fome. Não era hora da janta ainda? Tentei dormir, mas não sei dizer se consegui, não conseguia perceber a diferença entre os pesadelos e a realidade. Porra, to ficando louco. Sentei no colchão e dei uns tapas na minha cabeça, pra afastar essas coisas ruins. Toquei no bolso direito e tive um momento de euforia, quase subi pelo tubo de ar. Antes da treta, tinha pegado as paradas pra fumar um crivo e tudo continuava no meu bolso. Agora tinha achado companhia pra minha solidão, algo que acalmaria minha mente, tinha 10 minutos de satisfação no inferno.
             
            Olhei ao redor, me dei conta que realmente eu tava na merda. Resolvi fechar os olhos, sair dali. Infância. Jogo de taco. Eu era o melhor, corria mais que todo mundo. Corta. Escola. Professora falando coisas que eu não entendo. Era uma ladaia só, sempre me quebrava naquele lugar, hora de lagar, conseguir dinheiro, ajudar a coroa, não tava rendendo essa vida de estudar. Corta. Inverno frio, madrugada. Dentro da caçamba de uma Fiorino cheia de gelo, entrega de gelo 24 horas para as festas dos playboys. Chefe pedindo agilidade, o frio tranca o cara, chefe retrucava que era psicológico. Psicológica era a vontade de dar um soco nesse gordo gritão. Volta à tona. Cigarro já tava queimando o filtro, tava mais escuro. Uns barulhos vinham do duto de ar, tavam chegando da Malhação nos bretes lá em cima.
            Logo foram jantar, não deu tempo nem de falar com ninguém. Tava eu sozinho de novo, com fome. Não tava na hora ainda, porra? Comecei a cantar um rap. O seu papel devia ser cuidar de mim, cuidar de mim, cuidar de mim/
Não me espancar, torturar, machucar, me bater, eu não pedi pra nascer.
Não conseguia lembrar o resto da música, mas eu lembrava que ela me fazia me sentir vivo, dolorasamente vivo, quando eu ouvia. Eu também não tinha pedido pra nascer. Ali, naquelas paredes, a gente pedia era pra morrer, sair dali. Aceitava que nosso papel no mundo era passageiro, não importava muito, perdia o calor do abraço da mãe. Já tava pensando em morrer, coisa de louco.
            A janela da porta abriu. Botaram um broto (pão) com manteiga, minha janta. Pedi pra deixarem a janela aberta, o Seu nem deu bola; bateu com força. Comi no escuro mesmo.   Dormir era uma boa, pelo menos tentar. Amanhã era a chance de sair. Tava aqui fazia 4 horas. Fui pro colchão, ficava em cima do duto de ar. Virei pra tudo quanto era lado, não conseguia dormir. Daria um dedo por mais um cigarro. Fiquei de olho aberto olhando pra cima, tava vindo um barulho estranho do duto de ar. Parecia um martelo, repetido, batendo. Tun, tun, tun, tun. Pronto, não ia mais dormir até aquela merda parar. Gritei:
 - Para com essa porra, quero dormir, caralho! Para, porra! Chega de bater!
            Me chamaram de maluco e disseram pra eu dormir lá de cima, além de uma dúzia de xingamentos. Será que só eu tava ouvindo? Não pode. Gritei mais, só me xingaram. Gritei até perder a voz. Porra, como alguém tem um barulho dentro da cabeça? Não, isso não é normal. Levantei e fui na porta, botei o ouvido na janela. O som diminuiu, não era dali. Fui na janela que dava pro pátio, igual. Subi na cama. Tinha certeza, vinha do duto. Porra, como não ouviam? Era cada vez mais alto. TUM, TUM, TUM. Tentei ignorar, voltei pra cama. Nada, não ia ter jeito. Agora não importava se tava dentro ou fora de mim, esse som tava me deixando louco. Levantei, soquei a parede. Soquei com mais força. Chutei, chutei. A parede agora era o meu ex-chefe gordo. Gritava pra eu ir mais rápido, me chamava de frango. Odiava esse apelido. Soco, soco, soco. Chute. Chute. Vou te mostrar o frango. TUM TUM TUM TUM. Soco, cabeçada com força. Escuro.
            Tava tudo mais claro de novo. Muito claro, meu olho doía. A batida tinha parado. Eu estava numa cama; tinha saído do brete, tinha soro entrando na minha veia. Uma dona de jaleco branco veio até mim.

            - Bom dia, que bom que tu acordaste! Tu teve um pequeno probleminha lá onde tu tá internado e agora tu veio aqui pra gente te curar desses problemas. Vai dar tudo certo, viu?

            Não conseguia pensar direito, as coisas tavam mais devagar. Pelo menos agora eu não ia mais ficar louco. Será? Tentei chorar, mas as lágrimas dentro de mim já tinham secado faz tempo. Eu não pedi pra nascer, porra.

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