A pequena
janela do tamanho de uma TV de 14’’ se fechou com um estrondo. Esta era uma
janela diferente. Primeiro: ela não ficava em uma parede, mas em uma porta (de
metal, muito pesada); segundo: ela não dava para rua, mas para um corredor. Do lado de dentro desta janela, havia um
cubículo com mais três paredes, apenas uma delas com outra janela minúscula
(que dava para um pátio). Era a segunda vez que me jogavam nesse lugar. A
primeira foi quando cheguei da audiência, no meu primeiro dia preso. Era o
brete mais foda de ficar, nos botavam ali quando a gente chegava (pra se
adaptar à casa) ou quando fazia
cagada lá em cima. Ai ficava isolado do resto. Ou com mais um. Era o máximo que
o brete agüentava; dois nossos. Nesse minúsculo lugar (devia ter o tamanho de
duas mesas de bar), tinha uma latrina que fedia (raramente limpavam ali) e um
chuveiro pinga-pinga. Um canto pra deitar. Em cima, um tubo que descia ar lá de
outro setor, onde ficavam os bretes normais. Quando os internos não tavam fora,
rolava trocar uma ideia, mas não era sempre.
O
seu me jogou ali dizendo que eu tinha
que pensar no que tinha feito. Seu
eram os monitores dos internos (na casa,
até carcerário tem nome especial). Mas podiam me jogar trinta dias no isola que
eu ia fazer igual. A ladaia foi assim: o cara deu de mão no xampu que minha mãe trouxe escondido, não podia
deixar assim. Além de ter que me virar com um sabonete que cheira a cachorro
molhado, se eu deixo os outros se criarem, eles me comem vivo. Lá em cima é
matar ou morrer, e, aqui embaixo, era só morrer mesmo. Quando eu soube quem
era, obriguei a me devolver a parada na marra; um Seu que não ia muito comigo me levou pelo pescoço pra direção. Me
mandaram pro isola na hora e aqui tava eu, sozinho.
Eram
seis horas da tarde, tinham me posto aqui bem na hora da malhação, que bosta. O
sol já tava descendo, a luz era fraca, não tinha muito o que fazer. Esse cheiro
era insuportável. Comecei a fazer uns exercícios pro tempo passar, mas aguentei
só uns 45 minutos (isso sou eu imaginando, porque não tem relógio por lá). A
primeira vez que eu passei pelo isola, minha primeira noite na casa, tinha
outro guri que tinha caído por 157, rolou uns papos sobre música, mina, mas era
foda igual, lá ninguém era amigo de ninguém. Só que não tão foda quanto ficar
sozinho.
Pensei
na rua, a noite ia ser boa hoje. Sexta-feira, calor, a banda ia ser afudê.
Podia fazer uma carne em casa, curtir com a família e depois sair. Foi numa
noite dessas que os boina me pegaram.
Eu tinha trabalhado umas duas, três vezes na boca do lado de casa. Eu comprava
uma erva (curtia fumar, me acalmava, era bom pra caralho) ali do lado de casa e
os caras tinham me chamado pra dar uma mão; a grana era boa (uma noite pagava
meio salário meu) e eu precisava levantar um dinheiro pra coroa. Ai, os boina me viram uma dessas vezes e me
marcaram. Na noite que eu cai eu tava com um baseado só e uma grana pra comprar
a janta que de casa, tava descendo pro mercado quando me derrubaram no chão,
soco no rim e cala a boca. Condenado por tráfico; tinha dinheiro, droga e
morava perto da boca: o suficiente pra ser traficante. Ai me internaram aqui
(pra de menor tudo tem nome estranho,
prisão é internação e sempre dizem que tão nos educando).
Gritei
pelo tubo de ar. Ninguém me respondia. Porra, que fome. Não era hora da janta
ainda? Tentei dormir, mas não sei dizer se consegui, não conseguia perceber a
diferença entre os pesadelos e a realidade. Porra, to ficando louco. Sentei no
colchão e dei uns tapas na minha cabeça, pra afastar essas coisas ruins. Toquei
no bolso direito e tive um momento de euforia, quase subi pelo tubo de ar.
Antes da treta, tinha pegado as paradas pra fumar um crivo e tudo continuava no
meu bolso. Agora tinha achado companhia pra minha solidão, algo que acalmaria
minha mente, tinha 10 minutos de satisfação no inferno.
Olhei
ao redor, me dei conta que realmente eu tava na merda. Resolvi fechar os olhos,
sair dali. Infância. Jogo de taco. Eu era o melhor, corria mais que todo mundo.
Corta. Escola. Professora falando coisas que eu não entendo. Era uma ladaia só,
sempre me quebrava naquele lugar, hora de lagar, conseguir dinheiro, ajudar a
coroa, não tava rendendo essa vida de estudar. Corta. Inverno frio, madrugada.
Dentro da caçamba de uma Fiorino cheia de gelo, entrega de gelo 24 horas para
as festas dos playboys. Chefe pedindo agilidade, o frio tranca o cara, chefe retrucava
que era psicológico. Psicológica era a vontade de dar um soco nesse gordo
gritão. Volta à tona. Cigarro já tava queimando o filtro, tava mais escuro. Uns
barulhos vinham do duto de ar, tavam chegando da Malhação nos bretes lá em
cima.
Logo
foram jantar, não deu tempo nem de falar com ninguém. Tava eu sozinho de novo,
com fome. Não tava na hora ainda, porra? Comecei a cantar um rap. O
seu papel devia ser cuidar de mim, cuidar de mim, cuidar de mim/
Não me espancar, torturar, machucar, me bater, eu não pedi pra nascer. Não conseguia lembrar o resto da música, mas eu lembrava que ela me fazia me sentir vivo, dolorasamente vivo, quando eu ouvia. Eu também não tinha pedido pra nascer. Ali, naquelas paredes, a gente pedia era pra morrer, sair dali. Aceitava que nosso papel no mundo era passageiro, não importava muito, perdia o calor do abraço da mãe. Já tava pensando em morrer, coisa de louco.
Não me espancar, torturar, machucar, me bater, eu não pedi pra nascer. Não conseguia lembrar o resto da música, mas eu lembrava que ela me fazia me sentir vivo, dolorasamente vivo, quando eu ouvia. Eu também não tinha pedido pra nascer. Ali, naquelas paredes, a gente pedia era pra morrer, sair dali. Aceitava que nosso papel no mundo era passageiro, não importava muito, perdia o calor do abraço da mãe. Já tava pensando em morrer, coisa de louco.
A
janela da porta abriu. Botaram um broto (pão) com manteiga, minha janta. Pedi
pra deixarem a janela aberta, o Seu
nem deu bola; bateu com força. Comi no escuro mesmo. Dormir era uma boa, pelo menos tentar. Amanhã era a chance de
sair. Tava aqui fazia 4 horas. Fui pro colchão, ficava em cima do duto de ar.
Virei pra tudo quanto era lado, não conseguia dormir. Daria um dedo por mais um
cigarro. Fiquei de olho aberto olhando pra cima, tava vindo um barulho estranho
do duto de ar. Parecia um martelo, repetido, batendo. Tun, tun, tun, tun.
Pronto, não ia mais dormir até aquela merda parar. Gritei:
- Para com essa porra, quero dormir, caralho!
Para, porra! Chega de bater!
Me
chamaram de maluco e disseram pra eu dormir lá de cima, além de uma dúzia de
xingamentos. Será que só eu tava ouvindo? Não pode. Gritei mais, só me
xingaram. Gritei até perder a voz. Porra, como alguém tem um barulho dentro da
cabeça? Não, isso não é normal. Levantei e fui na porta, botei o ouvido na
janela. O som diminuiu, não era dali. Fui na janela que dava pro pátio, igual.
Subi na cama. Tinha certeza, vinha do duto. Porra, como não ouviam? Era cada
vez mais alto. TUM, TUM, TUM. Tentei ignorar, voltei pra cama. Nada, não ia ter
jeito. Agora não importava se tava dentro ou fora de mim, esse som tava me
deixando louco. Levantei, soquei a parede. Soquei com mais força. Chutei,
chutei. A parede agora era o meu ex-chefe gordo. Gritava pra eu ir mais rápido,
me chamava de frango. Odiava esse apelido. Soco, soco, soco. Chute. Chute. Vou
te mostrar o frango. TUM TUM TUM TUM. Soco, cabeçada com força. Escuro.
Tava
tudo mais claro de novo. Muito claro, meu olho doía. A batida tinha parado. Eu
estava numa cama; tinha saído do brete, tinha soro entrando na minha veia. Uma
dona de jaleco branco veio até mim.
-
Bom dia, que bom que tu acordaste! Tu teve um pequeno probleminha lá onde tu tá
internado e agora tu veio aqui pra gente te curar desses problemas. Vai dar
tudo certo, viu?
Não
conseguia pensar direito, as coisas tavam mais devagar. Pelo menos agora eu não
ia mais ficar louco. Será? Tentei chorar, mas as lágrimas dentro de mim já
tinham secado faz tempo. Eu não pedi pra
nascer, porra.